postado em 14/08/2009 19:12
Até os 16 anos, ele jogava como centroavante em competições da várzea de Três Marias, Minas Gerais. Com o tempo, foi para o gol e passou a defender equipes do porte de Cruzeiro e de PSV Eindhoven em torneios continentais, como a Libertadores e a Liga dos Campeões, respectivamente. Esse é um resumo da trajetória de Heurellho Silva Gomes, ou simplesmente Gomes, que superou o preconceito existente na Europa e até as críticas do ex-camisa 1 da Inglaterra, Gordon Banks, para tornar-se o primeiro goleiro brasileiro a ser titular de uma equipe - o Tottenham - do Campeonato Inglês.Um dos destaques do Cruzeiro na conquista da Tríplice Coroa (Campeonato Mineiro, Copa do Brasil e Campeonato Brasileiro) de 2003, Gomes encontrou um cenário de desconfiança em sua chegada à Holanda, em 2004. Tranquilo, o brasileiro apenas pediu tempo para trabalhar. Ganhou quatro campeonatos nacionais e levou o time a uma semifinal de Copa dos Campeões.
Negociado com o Tottenham em 2008, o ex-cruzeirense viu sua contratação ser criticada por Gordon Banks, que ficou indignado com a vinda de um goleiro estrangeiro para defender o Spurs, enquanto o inglês Paul Robinson ia para o banco de reservas. Mineiro, mais uma vez Gomes trabalhou em silêncio e após um começo difícil, que envolveu falhas, contusões e questionamentos, garante estar em lua-de-mel com o time de Londres.
Bem-humorado, o ex-jogador do Cruzeiro revela em entrevista à GE.Net suas metas para a temporada que se inicia com o jogo contra o Liverpool neste domingo, pelo Campeonato Inglês: voltar a disputar uma Liga dos Campeões, na qual teve atuações memoráveis pelo PSV em 2004/2005, e garantir uma vaga na seleção brasileira que irá à Copa do Mundo da África do Sul em 2010.
Segundo o goleiro, uma possível convocação para o Mundial da África do Sul amenizaria - mas não apagaria - a frustração que sente por não ter conseguido a classificação com a seleção brasileira para as Olimpíadas de 2004. Cinco anos depois da eliminação no Pré-Olímpico, o goleiro deixa transparecer que levará para o resto da carreira o fracasso com o time verde e amarelo sub-23.
Decepções à parte, Gomes diz estar feliz da vida em Londres. A única reclamação fica por conta do jogo duro praticado no Campeonato Inglês. No ano passado, após um choque com Degen, do Liverpool, o goleiro chegou a ficar desmaiado e admite ter um certo receio de entrar em jogadas mais duras. Nada, porém, que tire a tranquilidade do ex-centroavante da várzea de Três Marias.
GE.Net: Quando adolescente, você atuava como centroavante. Como ocorreu essa mudança para o gol?
Gomes: Eu fui para o gol porque não estava dando resultado na frente (risos). Na verdade, quando eu tinha 16 anos, em um campeonato de futebol de areia, só tinha vaga no gol e fui inscrito como goleiro. Fui um dos destaques da competição e depois todo mundo me queria como goleiro.
GE.Net: Após essa mudança para o gol, você acabou indo jogar no Democrata, de Sete Lagoas-MG. É verdade que nessa época você precisava se desdobrar no gol e na cozinha do clube?
Gomes: Na época, eu não tinha dinheiro para o transporte. Então todo dia tinha que andar 6 km para ir e para voltar dos treinos. Era uma época difícil por ter que andar tanto. Já chegava aquecido para os treinamentos. Então pedi para dormir no clube. Os dirigentes me arrumaram um lugar lá, mas, em troca, eu fiquei encarregado de pegar os pães na padaria, passar manteiga e distribuir para o elenco na concentração.
GE.Net: Já como titular do Cruzeiro, você participou do time que conquistou a Tríplice Coroa (Campeonato Mineiro, Copa do Brasil e Campeonato Mineiro) de 2003. Contudo, no ano seguinte, aquela mesma equipe, ainda reforçada por Rivaldo, decepcionou na Libertadores. O que aconteceu com o time na ocasião?
Gomes: Apesar de ser quase a mesma equipe de 2003 e ter o Rivaldo, acho que aquele time não engrenou. Quando fomos desclassificados (nas oitavas de final pelo Deportivo Calí, da Colômbia), foi até o jogo em que eu quebrei a mão e depois não atuei mais pelo Cruzeiro. Sei que todo mundo estava esperando uma grande campanha na Libertadores pelo que havíamos feito no ano anterior, mas não conseguimos manter o ritmo.
GE.Net:Você já declarou ter sido vítima de preconceito quando chegou na Holanda para defender o PSV. Qual era o motivo deste preconceito e como você superou isso?
Gomes: Sofri preconceito por seu um brasileiro jogando no gol. Quando cheguei na Holanda, os únicos goleiros brasileiros de destaque na Europa eram Taffarel e o Dida, enquanto hoje quase todos os clubes europeus grandes tem goleiros brasileiros. Então existiu essa desconfiança nos três primeiros meses e a imprensa holandesa questionava de quem havia sido aquela loucura de trazer um goleiro brasileiro. Eu preferi não bater de frente e só pedi alguns meses para mostrar meu futebol. Logo virei ídolo lá.
GE.Net: Quais os fatores para os goleiros brasileiros terem conseguido o respeito na Europa. Você acha que contribuiu neste processo?
Gomes: Olha, os treinadores de goleiro do Brasil estão fazendo um ótimo trabalho e estão ajudando para que os goleiros cresçam cada vez mais e venham para a Europa. Acho que o Taffarel e o Dida foram importantes porque abriram portas para nós e acredito que também dei minha contribuição, pois logo que cheguei já fui semifinalista na Copa dos Campeões. Hoje, a maioria dos goleiros brasileiros contratados por times europeus acabam se dando bem. Agora, os clubes do exterior não vão mais para o Brasil só para contratar atacante. Eles querem contratar goleiros também.
GE.Net: No PSV, você conquistou quatro campeonatos nacionais e esteve perto de vencer a Copa dos Campeões. Além disso, você era ídolo lá. Porque você deixou o PSV rumo ao Tottenham, um clube que não vem brigando por títulos de expressão nas últimas temporadas?
Gomes: O Tottenham é um grande time, de tradição, e aqui tenho a possibilidade de disputar o Campeonato Inglês, que tem mais visibilidade do que o Holandês. Além disso, era uma chance maior de voltar para a seleção, o que acabou acontecendo. Não vim por dinheiro, até porque estava muito bem no PSV e era ídolo lá. Mas tive problemas com a diretoria e preferi sair.
GE.Net: Quais problemas você teve com a direção do PSV?
Gomes: Não gosto de tocar nesse assunto, até porque já resolvi tudo com a direção do clube. Mas o problema foi que na minha renovação de contrato, em dezembro de 2007, perguntei se poderia trazer um treinador de goleiros para o PSV. O clube autorizou e eu chamei o Flávio Tenius, com quem eu havia trabalhado no Cruzeiro e acertei tudo com ele. Em março de 2008, ele veio para a Holanda para já ir se adaptando. O problema é quando ele chegou, o PSV o ignorou, porque os dirigentes disseram que era para o Flávio vir só no início da temporada. Nesse período, eu praticamente fiquei pagando o salário dele. Isso me deixou chateado, pois eles não foram corretos comigo e, pior ainda, não foram corretos com o Flávio, que deixou um ótimo emprego no Cruzeiro e quando chegou na Holanda não tinha nada.
GE.Net: Hoje você está estabilizado no Tottenham ? Quais são os objetivos do clube na temporada?
Gomes: Felizmente, tenho um respeito enorme aqui na Inglaterra. A torcida é maravilhosa comigo e, inclusive, canta músicas para mim no estádio ("We love our super keeper Heurelho Gomes", ou, traduzindo, "Nós amamos o nosso super goleiro Heurelho Gomes"). Eu tenho facilidade para criar identificação com o clube. Tive um início complicado no Tottenham, com contusões, mas a partir da segunda metade da temporada eu passei a ter um bom desempenho. Agora, o principal objetivo do clube é ficar entre os primeiros colocados e, no mínimo, conseguir uma classificação para a Copa dos Campeões.
GE.Net: O Manchester City fez grandes contratações para esta temporada. Já da para colocar o time de Robinho como um dos favoritos ao título inglês?
Gomes: Temos que ver os primeiros jogos. Eles fizeram grandes contratações, mas o importante é montar um time equilibrado. O que eu quero ver é quem vai jogar no ataque deles (risos). O Robinho tem a vaga dele já. O Tevez não pode ficar no banco e o Adebayor e o Roque Santa Cruz também vão lutar pela titularidade. Mas de qualquer jeito eles vão dar trabalho.
GE.Net: Na temporada passada, você se chocou com o Degen, do Liverpool, e chegou a ficar desacordado. Depois deste lance, você ficou com receio de entrar em jogadas mais fortes ?
Gomes: No Campeonato Inglês existe muito contato físico e o goleiro toma bastante pancada. Mesmo se você está de costas, o cara não alivia. E até quando a bola está mais para o goleiro, o atacante não tira o pé. Então, depois deste lance, fiquei com um pouco de receio e uso um protetor na boca para jogar até hoje. Tive que fazer uma cirurgia no dente e dá um pouco de receio por saber que é um campeonato muito pegado.
GE.Net: Você participou do título da Copa das Confederações de 2005, mas acabou não sendo convocado para a Copa do Mundo do ano seguinte. Tem medo que esta história se repita em 2010?
Gomes: Estou tranquilo. As oportunidades estão sendo dadas e acho que fiz um trabalho legal na Copa das Confederações deste ano. O Dunga tem acompanhado o meu trabalho no Tottenham e mesmo quando sou convocado, ele vê meu empenho nos treinos. Não dá para ajudar nos jogos porque o Júlio César está em uma grande fase, mas me empenho bastante nos treinos.
GE.Net: Mas você sente que já tem uma vaga garantida na próxima Copa do Mundo?
Gomes: Acho que ninguém tem vaga garantida ainda. De alguma forma, o grupo já deve estar fechado na cabeça do Dunga. Mas a única coisa que ele fala para gente é que o grupo está se comportando bem e para seguirmos dando nosso melhor na seleção.
GE.Net: Ser convocado para a próxima Copa do Mundo compensaria aquela tentativa frustrada de classificação para as Olimpíadas de Atenas-2004?
Gomes: São situações diferentes. Claro que disputar uma Copa do Mundo é um grande sonho, mas aquilo foi uma frustração muito grande, já que tínhamos uma grande equipe e nossa chance de ganhar uma medalha de ouro inédita para o futebol brasileiro era grande. Acho que isso (não ter conseguido ir às Olimpíadas) vai ficar sempre marcado na história de cada jogador daquele grupo.
GE.Net: Mas, em sua opinião, por que aquela equipe não conseguiu a classificação para as Olimpíadas de Atenas. Até por ter grandes jogadores, houve um clima de ;já ganhou;?
Gomes: O problema é que na primeira fase ganhamos muito fácil do Paraguai, e no jogo decisivo contra eles, podíamos empatar, mas acabamos perdendo. Acho que não teve isso de ;já ganhou;. Os jogadores do Paraguai entraram mais concentrados do que nós. Faltou, da nossa parte, ter dado aquele algo a mais. E, no fim do jogo, um jogador não pode sentir que poderia ter ido melhor.
GE.Net: Além da Copa do Mundo, você já tem algum objetivo para o futuro ? Pensa em trocar o Tottenham por outro clube europeu?
Gomes: Não tenho planos para o futuro. Tenho mais três anos de contrato com o Tottenham e enquanto eles me quiserem, vou ficar por aqui. Eu vivo muito o presente, vivo muito o clube em que estou. Prefiro não ficar iludido com outras coisas que possam atrapalhar meu desempenho.