Correio Braziliense
postado em 04/03/2020 04:06
Aos 71 anos, o uruguaio Julio Avelino Comesaña se sente em casa na Colômbia, especificamente no Junior Barranquilla. É o treinador mais vitorioso do clube que se tornará centenário em 2024. O museu do time tem pelo menos quatro taças cujo mentor foi o senhor que comandará a equipe contra o Flamengo, hoje, às 21h30 (de Brasília), no Estádio Metropolitano Roberto Meléndez, pela primeira rodada da fase de grupos da Copa Libertadores da América. Em entrevista exclusiva ao blog, Julio Comesaña exalta o Flamengo, diz que será um prazer conhecer o colega português Jorge Jesus pessoalmente e ver in loco o trabalho do time rubro-negro, demonstra encantamento com a dupla de ataque formada por Bruno Henrique e Gabriel Barbosa; e certo desencantamento com o futebol brasileiro que, segundo ele, curtiu bastante até a derrota da Seleção Brasileira para a Itália na Copa do Mundo de 1982, na Espanha. “Aquele futebol nunca mais voltará”, lamenta. Julio Comesaña admite que duelará com o favorito ao título da Libertadores, filosofa sobre a alma dos jogadores uruguaios e colombianos, e explica por que o país em que trabalha tem tantos técnicos de excelência, como Reinaldo Rueda e Juan Carlos Osorio, mas prefere contratar estrangeiros para comandar a seleção colombiana. O atual é o português Carlos Queiroz.Quais são as suas expectativas para a estreia do Junior Barranquilla contra o atual campeão?
Estamos construindo um novo time. A nossa expectativa passa por melhorar o nosso jogo, fazer uma boa partida diante de um adversário consolidado como o Flamengo. Se conseguirmos vencer, será excelente. Se isso não for possível, avaliaremos o nosso desempenho e continuaremos a nossa caminhada.
Como avalia o trabalho do português Jorge Jesus? Ele faz algo diferente do que realizam os treinadores sul-americanos?
Eu me limito a dar opinião sobre o que tenho visto. Não o conheço pessoalmente. O que vejo no Flamengo mostra um trabalho de equipe muito bem feito, equilíbrio no ataque e na defesa e muita capacidade individual dos jogadores de desequilibrar uma partida. Isso leva o Flamengo a ser um time eficiente, sólido para defender e atacar. É um estilo de jogo muito agradável e com resultados. Considero que o Flamengo faz um trabalho excelente e será ótima oportunidade vê-lo aqui em Barranquilla.
O Junior Barranquilla virou celeiro de reforços para times brasileiros. Cantillo, Chará, Yony González, Cuéllar e Vladimir Hernández são alguns nomes que trocaram o time colombiano pelo Brasil...
Nos últimos anos, temos incorporado jogadores com características técnicas ideais para desenvolver a ideia de jogo que não somente o Junior Barranquilla, mas o futebol colombiano gosta também. Temos deixado uma sensação agradável em qualquer lugar que temos ido jogar. Lamentavelmente, a Colômbia é um país exportador e não pode manter esses jogadores. Temos que começar de novo sempre. Eu perdi Luis Diaz, Jarlan Barrera e agora Victor Cantillo.
O senhor é uruguaio. Por que o seu país não ganha a Libertadores desde o título do Nacional (1988)?
O futebol uruguaio é pobre economicamente e os clubes pagam caro por isso. Há sangria de jogadores o tempo inteiro. Os nossos times demoram muito para se desenvolver e crescer. Os jogadores saem muito jovens. O Uruguai é um país com poucos habitantes. Cerca de 300 jogadores partem todos os anos para todos os lugares do mundo. O jogador uruguaio tem algo que não se compra nem se aprende. É natural, rebelde na adversidade. Quer triunfar e está disposto a pagar o preço para transcender. Eles têm coragem e sabem jogar sob pressão. A história é pesada para crianças iniciantes. Há uma grande pressão. Uma grande demanda desde as categorias de base.
É assim na Colômbia também? Quais são as características do jogador colombiano?
A relação dos colombianos com o jogo é mais alinhada com o Brasil do que com o Uruguai. Eu diria que o Uruguai é muito fiel ao seu estilo. Os outros estão mudando. O Uruguai é muito confiante no seu estilo de jogo e o defende em qualquer lugar. Assim, eles alcançam as conquistas mais importantes.
Quem são as suas referências no futebol brasileiro?
Nunca tive ralações como o futebol brasileiro, somente admiração pelos jogadores e treinadores por tudo o que eles representam no futebol mundial. Tenho vários amigos, um grupo, com quem compartilho informações e comentamos temas sobre o futebol brasileiro. Admiro muito o Santos de Dorval, Mengálvio, Coutinho, Pele e Pepe. Desfrutei muito de Clodoaldo, Gérson, Jairzinho, Tostão, Rivellino e Pelé.
O senhor parece desencantado com o futebol brasileiro…
Dos anos 1960 até aqui, vi as grandes seleções brasileiras até aquela derrota para a Itália na Copa do Mundo de 1982. Aquele resultado nos deixou uma sensação de que nunca mais veremos um futebol como aquele. Hoje, o futebol brasileiro é outra coisa. Todo mundo marca, arma fortes sistemas defensivos e aposta em jogadores que desequilibrem. Aquele futebol não voltará.
O senhor falou em jogadores que desequilibram. Hoje, o Brasil tem apenas um fora de série: Neymar.
Um jogador excelente. Desequilibra nas ações individuais e coletivas. Faz gol e dá assistência. Não sei como anda a vida pessoal dele. Jogadores como ele conquistam tudo muito jovens e é bem difícil conviver com o dinheiro e a fama neste mundo em que vivemos, com sociedades totalmente fora de controle.
Um ponto fortes do Flamengo é a dupla de ataque formada por Bruno Henrique, que não enfrentará o Junior Barranquilla, e Gabriel Barbosa. O que acha deles?
Infelizmente, o Bruno Henrique se machucou. Eu o considero um excelente atacante. Ele se complementa muito bem bom Gabriel Barbosa. Este último é um matador. Os movimentos dele por fora, por dentro e em diagonais são importantíssimos para o Flamengo. Ele é muito poderoso e castiga erros do adversário. É um jogador muito objetivo.
Quem são os favoritos ao título?
Ainda é muito cedo. O Flamengo volta a ser candidato porque a sua organização institucional indica que o clube pretende continuar crescendo e conquistando troféus de acordo com os investimentos que realiza. De qualquer forma, temos que esperar as fases do torneio. A partir daí, veremos desempenhos superiores ao da fase de grupos.
Boca Juniors, River Plate, Palmeiras, Grêmio… Não estão no patamar do Flamengo?
São concorrentes importantes, mas prefiro vê-los jogar. Não se ganha somente com a história ou retrospectos.
A Colômbia tem grandes treinadores como Reinaldo Rueda, Hernán Dario Gómez, Juan Carlos Osorio… Por que a seleção é comandada desde 2012 por estrangeiros? O argentino José Pekerman e agora o português Carlos Queiroz?
É uma pergunta muito profunda. O futebol colombiano encontrou sua identidade no fim da década de 1980, com Francisco Maturana, Hernán Gomez e Hugo Gallego. Esses homens haviam armazenado enorme experiência dentro do campo. Algo que ensinaram, semearam na Colômbia Jose Ricardo De Leon e Luis Cubilla, treinadores uruguaios. O primeiro deixou como legado a pressão, e o segundo, o bom manejo da posse de bola. Além disso, transmitiram aos jogadores os sentimentos mais profundos do jogo, e foram gerando confiança. Acreditavam no que faziam e desfrutavam. Assim diz a história. Na Colômbia, havia jogadores e muitos técnicos estrangeiros. Cada um com uma ideia de jogo. A seleção jogava como cada técnico desejava. Agora, voltamos aos velhos tempos.
A relação entre técnicos e jogadores está muito robotizada?
Há muita informação de todas as partes e se fala muito de intensidade, muitas vezes utilizam uma linguagem que os jogadores nem sequer compreendem. Nós temos que recuperar um pouco da humanidade e compreender que os jogadores são seres humanos, os protagonistas do jogo. Você tocou em um tema muito profundo para ser tratado e explicado em apenas uma resposta. Agradeço muito por essa oportunidade de tratar desse assunto.
“Os movimentos dele (Gabigol) por fora, por dentro e em diagonais são importantíssimos para o Flamengo. Ele é muito poderoso e castiga erros do adversário. É um jogador muito objetivo”
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