Gláucia Chaves
postado em 02/12/2011 10:47
Desde que a internet começou, a vida ficou muito mais prática. Agora, hábitos como rebobinar a fita de vídeo antes de devolver para a locadora, manter o disco de vinil sempre no papel manteiga ou proteger o filme da câmera fotográfica da luz, sob o risco de perder todas as imagens registradas, fazem parte de um passado remoto e distante. Não é preciso mais se preocupar com o espaço para o porta-CDs no apertado porta-luvas do carro, já que todas as músicas estão armazenadas nos cada vez menores tocadores de MP3 atuais. Será mesmo? Resistentes às maravilhas do mundo conectado, muitas pessoas ainda nutrem afeição genuína por tecnologias ;antigas;.
Seja pelo charme retrô, por puro saudosismo ou medo confesso de não se adaptar à velocidade frenética dos avanços tecnológicos, pessoas como o empresário José Mariano Neto, 57 anos, não acham que a facilidade da rede seja algo assim tão maravilhoso quanto dizem. Interessado por música desde que tinha 9 anos, José se considera um ouvinte à moda antiga. ;Gosto de colocar o CD no aparelho, trocar as faixas, folhear o encarte. É uma experiência completamente diferente;, detalha. Nos anos 1970, José foi DJ em São Paulo. Desde essa época, ele já era um militante do vintage. ;Sempre preferi o vinil, porque as fitas cassete sujavam o aparelho e o som saía errado;, justifica.
A coleção de José, embora ainda invejável, já foi maior. Além dos mil CDs, ele conta que guardava 600 discos de vinil em casa ; mas teve os objetos furtados. Ainda assim, ele garante que guardar seu volumoso tesouro pessoal vale a pena. ;Você pode até gravar um CD com 130 músicas ou salvar em um pendrive, mas as faixas não terão o mesmo nível de som;, explica. ;Algumas músicas tocam mais alto, outras mais baixo. A qualidade não é a mesma e poucas pessoas percebem;. José não está sozinho. Segundo um levantamento feito pela empresa de pesquisas tecnológicas Gartner, a venda de CDs, embora esteja diminuindo, continua muito superior à de música on-line ; e continuará assim por alguns anos.
Qual será, então, o motivo que leva essas pessoas a preferirem as ;tecnologias antigas; à infinidade de opções consideravelmente mais práticas do mundo digital? Para o antropólogo e especialista em mídia e consumo contemporâneos da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) Everardo Rocha, no caso dos produtos musicais, os formatos físicos fazem com que o consumidor crie uma espécie de relação com o ídolo. ;O fato de você ter saído de casa, ido à loja e comprado o CD faz com que ele tenha mais significado;, defende. ;Não é só a música do artista que interessa.; Contudo, ele frisa que não é preciso separar as pessoas em dois times diferentes, uma vez que é comum, mesmo para quem gosta das versões mais palpáveis, consumir também alternativas mais modernas. ;O indivíduo pode muito bem baixar algumas músicas e comprar outras;, completa. ;Esse comportamento não é excludente.;
O professor lembra ainda que, fora do âmbito musical, o leque de pessoas que se identificam com plataformas antigas é maior do que se imagina. ;O próprio livro é um exemplo, porque mesmo que seja um tablet com tela grande, é mais desconfortável que ler fisicamente;, argumenta Rocha. Mesmo com o bombardeio de novidades eletrônicas, o especialista mantém uma visão otimista a respeito do futuro dos vanguardistas da tecnologia. Parafraseando a famosa lei do francês Antoine Lavoisier, ele defende que, na indústria de consumo, nada se cria, nada se perde, tudo se transforma. ;Todo mundo dizia que o rádio ia acabar, por exemplo. As coisas vão se reorganizando e fazem uma espécie de simbiose para continuar existindo;, completa. ;As novidades tecnológicas não mudam a cultura tanto quanto gostariam. Elas não têm tanta força quanto se diz.;
Antigas culturas
O fotógrafo e professor de fotografia Francisco Lima Ferreira ; ou apenas Chico Ferreira, como é conhecido por seus alunos ; é um dos que tentam manter vivas as ;antigas culturas; mencionadas por Rocha. Aos 29 anos, ele conta que desde que pôs as mãos em uma câmera fotográfica pela primeira vez, aos 12, nunca mais conseguiu abandoná-la de fato. Até nas aulas ela é primordial: antes de aprenderem a operar câmeras digitais, Chico faz questão de que os alunos tenham experiência com a versão de filme. ;Se eles aprenderem como é o processo de ajustar a máquina manualmente, vão ter muito mais facilidade com a digital;, justifica.
Apesar de também fazer uso das câmeras digitais, Chico acredita que aprender com o passado é essencial para aproveitar o que o futuro tem a oferecer. ;Antigamente, o fotógrafo tinha que pensar muito antes de tirar cada foto, pois tinha tentativas limitadas;, argumenta. ;Hoje, com o celular, há um fotógrafo a cada esquina, mas nem todos têm a experiência necessária.;
Força do hábito
Especialista em comportamento do consumidor, o administrador e professor da Universidade de Brasília (UnB) Rafael Porto acredita que haja ainda um pequeno detalhe que impede algumas pessoas de entrarem de cabeça no mundo digital: a falta de familiaridade com as ferramentas. ;Pode ser que esses consumidores não saibam ou não tenham paciência para procurar coisas na internet;, arrisca. Além disso, ele salienta que o fato de grande parte dos arquivos de música disponíveis para download gratuito ser ilegal também funciona como um fator limitante. ;No Brasil, as pessoas têm a possibilidade de baixar músicas sem pagar, mas no exterior não é assim;, complementa. ;Saber que é ilegal incomoda esses consumidores.;
A força do hábito é outro fator que incentiva a preferência pela tecnologia retrô, segundo Rafael. ;Se a pessoa passa por livrarias e lojas de música sempre, entra e acaba comprando. Há essa inércia do comportamento;, explica. Para o administrador, contudo, o fato de alguém trocar tablets e tocadores de MP3 por livros e discos de vinil nada tem a ver com a emoção. ;Acredito que as pessoas não pensam em quem está ganhando dinheiro com o produto. Geralmente, elas estão pensando em si mesmas, em quanto vão economizar e como vão usufruir daquilo;, argumenta.
Para Janete Oliveira Sousa, 60 anos, manter velhos hábitos é mais que uma questão monetária. Influenciada pelo pai, ela conta que coleciona discos de vinil desde os 14 anos de idade. A paixão cresceu com ela, e, desde 1991, a bibliotecária é dona de um sebo que aluga e vende mais de 10 mil CDs e LPs. Além do acervo, Janete mantém outras relíquias musicais, como fitas VHS, videolaser (aparelho parecido com o usado para DVD, mas feito para discos de vinil) e um megafone. ;O público tem muito interesse em ver como é a gravação original, o desenho da capa e as informações musicais;, defende. ;Temos obrigação de preservar essas coisas, senão, daqui a um tempo, as crianças não farão ideia do que é uma fita cassete.; Os objetos fazem parte do que Janete apelidou de Clube e Museu do Disco de Vinil de Brasília, que funciona por meio de doações. ;Só pela internet as pessoas perdem a história da música;, defende.
Convergência se aprofunda
Em 2010, a receita dos gastos do consumidor final com música comprada na internet ficou na casa dos US$ 5,9 bilhões. O número aumentou um pouco este ano e, até agora, caminha para os US$ 6,3 bilhões. A previsão é de que essa conta salte para US$ 7,7 bilhões em 2015. Ao mesmo tempo, os amantes do formato físico das música gastaram US$ 15 bilhões em CDs e LPs em 2010. Até 2015, espera-se que essa quantia baixe para US$ 10 bilhões. Em resumo: se as expectativas estiverem corretas, daqui a quatro anos, a comercialização de música on-line ainda estará a US$ 2,3 bilhões de distância da venda de mídias físicas.