Dois metros e meio de altura, mais forte que um ser humano e com pele amarelada mal cobrindo os músculos e as artérias do corpo. Assim, Mary Shelley descreve a sua criatura em um dos livros mais influentes da história: Frankenstein, ou o Prometeu Moderno. Na história, o cientista Victor Frankenstein descobre uma forma de dar vida a corpos inanimados e tenta criar um ser mais resistente do que os humanos usando partes de cadáveres. O resultado, porém, é uma criatura que destrói a vida de seu criador por vingança, após ser abandonada.
Para escrever a obra, que completa dois séculos este ano, Shelley inspirou-se em desenvolvimentos científicos, como os estudos do efeito da eletricidade no corpo de animais conduzidos por Luigi Galvani. Porém, a característica mais distinta do monstro ; as partes costuradas de vários corpos humanos ; parece baseada em um mito e sonho distante da ciência da época: substituir membros ou órgãos danificados por saudáveis.
Hoje, a prática é uma importante ferramenta para salvar vidas: o transplante. Após décadas de avanços na medicina, é possível transplantar vários órgãos de uma vez e até membros inteiros. Indo além: uma das grandes apostas para o futuro é a criação de órgãos em laboratório feitos a partir de células do próprio paciente. Os estudos na área estão bastante avançados, e pesquisadores acreditam que veremos aplicações clínicas em poucos anos.
;Há cerca de 12 anos, descobri uma forma de retirar completamente todo o sangue, todas as células e o todo o DNA de órgãos, deixando apenas uma estrutura básica;, conta Doris Taylor, diretora do Centro de Biotecnologia de Órgãos e Células do Instituto do Coração do Texas, nos Estados Unidos. ;A ideia é simples: pegar o molde natural de um órgão imperfeito e usar as células do paciente para construir um que corresponda ao seu corpo. Acho que Mary Shelley ficaria orgulhosa;, complementa.
Para criar o órgão artificial, células-tronco retiradas do paciente são colocadas sobre o molde e condicionadas a se reproduzir até formarem, por exemplo, um coração ou um fígado. Em um dos trabalhos de que Doris Taylor faz parte, a equipe criou modelos funcionais em miniatura do fígado usando células humanas. A estrutura funcionou por 28 dias e ajudou os cientistas a aprofundar o entendimento sobre o órgão. Detalhes do trabalho foram divulgados em janeiro na revista PLOS One.
O coração também está perto de ser recriado completamente. Em 2016, pesquisadores do Hospital Geral de Massachusetts e da Faculdade de Medicina de Harvard publicaram, na revista Circulation Research, um estudo mostrando como geraram um coração adulto em tamanho real e capaz de bater. De lá para cá, outros cientistas divulgaram ter criado estruturas parecidas, mas todas foram consideradas imaturas e não podiam ser transplantadas.
;Estamos muito otimistas com o progresso sendo feito no fígado e no coração. Acredito que os primeiros estudos em humanos acontecerão em menos de uma década se os trabalhos ocorrerem como o esperado. Após os estudos clínicos, acho que órgãos criados em laboratório poderão ser um tratamento importante;, estima Taylor.
Lenda e desafios
À época do lançamento de Frankenstein, havia apenas lendas de cirurgiões que realizavam transplantes. O primeiro procedimento bem-sucedido de um órgão ocorreu apenas em 1950, nos Estados Unidos: um rim para uma mulher que sofria de doença hereditária. Até hoje, porém, o procedimento, mesmo já cotidiano nos centros cirúrgicos, não é simples. Precisa-se encontrar um doador compatível e ingerir medicamentos imunossupressores ; que evitam a rejeição ; para o resto da vida, o que gera uma série de efeitos colaterais.
Giuseppe Cesare Gatto, coordenador da Comissão Intra-Hospitalar de Doação de Órgãos e Tecidos para Transplante do Hospital Universitário de Brasília (HUB), conta que a rejeição é um grande problema para transplantados. Há ainda outras complicações: pacientes com problemas renais podem precisar de três ou quatro doações durante a vida, pois os órgãos começam a apresentar danos com o tempo.
Os órgãos criados em laboratório poderão resolver justamente esse problema, pois são feitos com o mesmo material genético que o resto do organismo do paciente. ;Acho que a engenharia genética é um das grandes promessas do futuro;, afirma Cesare. ;Com essas técnicas, poderemos ter fábricas de órgãos. Isso é muito importante de acontecer. Já está sendo criada uma fábrica de sangue artificial no Japão, por exemplo.;
Apesar de cada vez mais reais, essas soluções ainda despertam medo, dúvidas e curiosidades, reações típicas também a obras de ficção. Taylor, uma das pioneiras na engenharia de tecidos, conta que seu trabalho já foi comparado ao de Victor Frankenstein mais de uma vez. ;Acho que é uma analogia fácil, mas eu a vejo como uma medalha de honra. As tochas e os forcados acontecem ; pessoalmente e profissionalmente ;, mas o trabalho é realmente empurrar os limites da ciência para frente;, diz a pesquisadora.