Correio Braziliense
postado em 03/02/2020 08:00
Caro e longo, o processo de desenvolvimento de medicamentos tem uma altíssima taxa de insucesso. Ainda que passem pelas fases de tubo de ensaio e em cobaias, os compostos falham 86,2% das vezes quando testados em humanos, de acordo com estimativas baseadas no número de aprovações de novas drogas pelo Food and Drug Administration (FDA). Ao mesmo tempo, preocupações éticas com pequisas que utilizam animais impulsionaram a corrida por alternativas mais viáveis. Assim surgiram os “órgãos num chip”, tecnologia que avançou significativamente nos últimos 12 meses.
Agora, pesquisadores do Instituto Wyss, da Universidade de Harvard, anunciaram, em dois artigos publicados na revista Nature Biomedical Engineering, a primeira plataforma funcional que, combinada a um modelo computacional, prevê, com sucesso, o comportamento de medicamentos em 10 tipos de órgãos. O desafio foi proposto pela Agência de Projetos de Pesquisa Avançada de Defesa (Darpa), do Departamento de Defesa norte-americano, em 2012. Em menos de uma década, os cientistas conseguiram desenvolver o sistema, que não apenas testa a segurança do composto em um chip que reproduz a fisiologia de um órgão específico, mas faz isso considerando o organismo de forma sistêmica.
Usualmente, a pesquisa de medicamentos na fase pré-clínica — com animais — investiga duas características do composto. A primeira, a farmacocinética, estuda o quanto da droga é absorvida, assim como sua distribuição, metabolismo e excreção no organismo. Assim, os cientistas calculam o nível ideal da substância na corrente sanguínea, de forma que, além de eficaz, ela não seja tóxica.
Vascularização
Esse é um estudo impossível de se fazer apenas em células ou tecidos, porque as respostas envolvem a interação entre diferentes órgãos, ligados por uma rede vascularizada, por onde o sangue flui. Por isso, os animais são indispensáveis. As cobaias também são utilizadas para avaliar a farmacodinâmica do composto, isto é, os efeitos (incluindo adversos) no órgão onde o medicamento deve agir. A abordagem desenvolvida pelo Instituto Wyss substitui os seres vivos ao permitir que esses testes sejam feitos em um sistema completo, composto, inclusive, por células humanas. Por isso, foi apelidada de “corpo humano em um chip”.
Richard Novak, engenheiro do Instituto Wyss e um dos principais pesquisadores do projeto, explica como funciona o chip que reproduz o comportamento dos órgãos. Eles são feitos de um polímero flexível do tamanho de um cartão de memória, contendo dois canais ocos, separados por uma membrana porosa. “As células específicas do órgãos são cultivadas em um lado da membrana em um dos canais, enquanto as células endoteliais vasculares, no outro. A membrana porosa permite que os dois compartimentos se comuniquem e troquem moléculas como citocinas, fatores de crescimento e medicamentos, bem como os subprodutos dos medicamentos, produzidos por atividades metabólicas específicas de órgãos.”
No primeiro artigo publicado na Nature Biomedical Engineering, a equipe do Wyss apresentou a plataforma Corpo em um Chip. Ela é possível graças a um instrumento desenvolvido pelo instituto chamado Interrogator, capaz de cultivar 10 chips de órgãos diferentes e, na sequência, transferir fluidos entre os canais vasculares, reproduzindo o funcionamento normal do sistema vascular do corpo, onde vasos sanguíneos passam por diferentes órgãos, abastecendo-os de nutrientes e oxigênio.
O equipamento permitiu à equipe cultivar, promover a perfusão (passagem de líquido de um órgão para o outro pelo sistema vascular ou linfático) e fazer a ligação entre diferentes tecidos humanos. “Conseguimos ligar os canais vasculares de oito chips de órgãos, incluindo intestino, fígado, rins, coração, pulmão, pele e barreira sangue-cérebro. O instrumento manteve a viabilidade de todos os tecidos e as funções específicas de seus órgãos por três semanas e, o mais importante, nos permitiu predizer quantitativamente a distribuição dos químicos pelo sistema inteiro”, conta Novak.
Esforço
O segundo artigo descreve um experimento que testou o efeito de um composto em três chips de órgãos ligados por fluidos e operados pelo Interrogator. Em seguida, o modelo computacional calculou corretamente a toxicidade e a concentração da droga em cada um dos órgãos — os cientistas sabem disso porque são medidas já avaliadas em pacientes humanos. O composto testado foi a substância ativa do chiclete de nicotina, que vem sendo testado para doenças neurodegenerativas e intestinais.
“Ambos os estudos representam um esforço tremendo dos pesquisadores, que colocaram juntos seus conhecimentos em engenharia de tecidos, microfabricações, além do expertise computacional, farmacológico e fisiológico, para obter esse enorme avanço nos testes pré-clínicos de drogas”, comenta Rachelle Pratnil-Baun, cientista do instituto responsável por orquestrar o trabalho desenvolvido nos diferentes setores do Wyss.
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