postado em 01/02/2012 09:04
Paz e amor! Tal ideia, que nunca deveria ter morrido, teve seu auge nas décadas de 1960 e 1970, sintetizada no movimento hippie. A região de Maringá, Maromba e Visconde de Mauá, no alto da Serra da Mantiqueira, na divisa do Rio de Janeiro com Minas Gerais, foi um dos redutos brasileiros dessa geração que sonhava com um mundo sem guerras. Montanhas, cachoeiras, ar puro, muito verde e tudo o mais encantavam moças, moços e outros não tão jovens assim, que pensavam em nunca mais ir embora.A filosofia hippie pode não ter ido para frente, mas a região prova que os caras da paz e do amor tinham razão ou, pelo menos, sabiam escolher bem seus paraísos particulares. Os atrativos do lugar continuam apoiados em belas paisagens e sustentabilidade, acrescidos do conforto de boas pousadas. A região também se destaca por algumas aparições improváveis, como a de um grupo de tropeiros que seguem à risca os costumes de décadas atrás.
Passear por lá faz lembrar uma velha frase: ;Fulano ainda está voltando de Kombi de Woodstock;, usada para fazer uma gozação com quem viveu os loucos anos 1960 e até hoje passeia no mundo da lua. Se os ripongas não são mais a marca registrada local, parece que aquela antiga Kombi, toda colorida, ainda roda nesses pontos do alto da Mantiqueira, numa viagem sem fim.
Os titãs do tropeirismo
A cena, surpreendente, aconteceu na vila de Maromba, um dos distritos cravados no alto da Serra da Mantiqueira, na divisa dos estados do Rio de Janeiro e Minas Gerais: eis que na estradinha de terra surge, montado numa mula, Jair Fernandes Fonseca, de 60 anos, completados recentemente. A figura, apesar do cabresto nas mãos, pode ser definida como um símbolo de elegância discreta, um senhor bem apessoado.
A camisa vermelha berrante, impecavelmente bem passada, está por dentro da calça. Na cintura, o indefectível canivete; na cabeça, o chapéu, parecendo novo. O item contrastante é a galocha, que, convenhamos, não fica bem com nada. Mas o conjunto acaba harmônico e asseado, como alguém que tivesse se vestido para ir à missa de domingo. O que destoa de tudo é saber que esse senhor é um tropeiro e começa a empreender uma longa jornada em cima do animal.
Por que alguém se vestiria tão bem para fazer um caminho de terra, serra, lama e água? Seu Jair agradece o elogio e diz que gosta de andar assim, mesmo nas horas de pura labuta. Enquanto desenrola o queijo canastra ; guardado em embalagem própria para viagens no lombo de animais ;, conta que frequenta as vilas de Mauá, Maromba e Maringá há 20 anos, quando resolveu ser também tropeiro, uma atividade a mais em seu mundo de pequeno produtor rural.
Todas as sextas-feiras, ele e um grupo apeiam na região das vilas, levando produtos para vender. A jornada começa na pequena Fragária, distrito de Itamonte, em Minas Gerais. Dali cruzam as serras, o ;mar de morros;, como chamam, para seis horas depois chegar ao destino. No caminho, a divisa com o estado do Rio de Janeiro, a beleza do cenário da Serra da Mantiqueira, e alguns temerários desfiladeiros. Na carga de Jair e de seus companheiros, delícias produzidas lá no alto das montanhas: geleia, mel, ovos caipiras e o campeão de vendas, o queijo canastra, esperado com ansiedade por turistas e comerciantes.
Há também a truta, limpa e embalada de véspera, para seguir viagem acondicionada no gelo. Esse peixe encontra excelentes condições para procriar nos trutários do alto da Mantiqueira, onde clima, altitude e boa água são como maná para a espécie. Geralmente, seguem com seu Jair os tropeiros Jesuel, Paulo Fonseca e Natanael, que formam um grupo quase permanente, além de um ou outro lá do alto. Saem na sexta-feira cedo e chegam no mesmo dia, para voltar no domingo de manhã. Se o comércio ajudar, o retorno é mais fácil, sem o peso das mercadorias.
O grupo se tornou famoso depois que um programa semanal de tevê contou sua história. O sucesso das vendas está na qualidade dos produtos da roça e também na apresentação dos tropeiros, que conquistam facilmente a simpatia dos compradores. Pense bem: você chega em casa e mostra orgulhoso o superqueijo canastra comprado diretamente de um tropeiro, por menos de R$ 20 a peça de 1kg. Sucesso garantido!
O ofício, hoje visto até com um certo romantismo, está em extinção no Brasil. Pelo menos não tem mais a força de séculos atrás, até começar a declinar por volta de 1950, com o advento das estradas melhores e dos veículos de carga. Presenciar esses homens andando pelas ruas de terra das vilas ou seguindo por caminhos na serra é como ver um belo filme em preto e branco. Com direito a reprise todos os fins de semana.
O jornalista viajou a convite da Tereza Quinderé Comunicação
A matéria completa você lê na edição de hoje do Correio Braziliense