Os novos dados genéticos obtidos em Shimao, no norte da China, indicam que homens e mulheres tiveram papéis distintos nos antigos rituais de sacrifícios humanos. A partir da análise de restos mortais encontrados em um “poço de crânios”, pesquisadores conseguiram reconstruir parte da dinâmica social daquela comunidade da Idade da Pedra. O estudo, publicado em 26 de novembro de 2024 na revista Nature, aponta que a maior parte das vítimas decapitadas era masculina, o que contrasta com interpretações anteriores focadas em sacrifícios femininos.
A antiga cidade de Shimao, ocupada entre aproximadamente 2.300 e 1.800 a.C., era um grande centro urbano fortificado, com pirâmide escalonada, áreas de produção artesanal e complexos funerários. Nesse cenário, os rituais de sacrifícios humanos parecem ter desempenhado um papel importante na construção simbólica do poder político e na relação com os mortos. As evidências atuais sugerem que o gênero das vítimas estava diretamente ligado ao tipo de cerimônia e ao local onde os restos eram depositados.
O que revela o “poço de crânios” de Shimao?
O chamado “poço de crânios” foi identificado próximo ao Portão Leste da cidade. Nele, arqueólogos encontraram 80 crânios humanos, sem seus respectivos corpos, sugerindo decapitação e deposição deliberada. A análise genética mostrou que cerca de 90% desses indivíduos eram homens. Esse dado aponta para um ritual de sacrifício masculino associado à arquitetura defensiva, possivelmente ligado à consagração das muralhas e do próprio portão.
Segundo os pesquisadores, esses homens não eram estrangeiros capturados em conflitos, mas integrantes da própria comunidade de Shimao. O DNA nuclear de alta resolução, obtido a partir de 169 amostras humanas antigas da região, indica que os crânios masculinos compartilham a mesma ancestralidade dos ocupantes das tumbas de elite. Assim, o sacrifício masculino em massa não parece ter sido um ato voltado apenas contra inimigos externos, mas parte de um sistema ritual interno, provavelmente conectado a ideias de proteção, lealdade e vínculo coletivo com o território.
Sacrifícios humanos em Shimao: como o gênero influenciava os rituais?
Os arqueólogos identificaram ao menos dois modelos principais de sacrifício humano em Shimao, cada um associado a um gênero predominante e a funções rituais diferentes. No primeiro modelo, ligado ao poço de crânios e a outras “fossas de cabeças” próximas às entradas da cidade, prevalecem vítimas do sexo masculino, decapitadas e enterradas em conjunto. No segundo, ligado às tumbas de elite, são encontradas sobretudo mulheres sepultadas como acompanhantes de indivíduos de alto status.
Esses dois formatos sugerem uma divisão simbólica entre sacrifício masculino e feminino:
- Rituais masculinos: deposição de crânios sob portões e muralhas, associados à proteção, fundação e fortalecimento da cidade;
- Rituais femininos: enterramentos junto a túmulos de líderes, possivelmente vinculados ao culto aos ancestrais e à legitimação do poder.
Dessa forma, a arqueologia de Shimao indica que o gênero das vítimas estava integrado a uma lógica ritual estruturada, na qual locais específicos — portões, muralhas, cemitérios de elite — recebiam tipos diferentes de sacrifícios.
Por que homens e mulheres eram sacrificados de maneiras diferentes?
Os motivos exatos para essa distinção de gênero nos sacrifícios em Shimao ainda estão em debate. No entanto, o estudo propõe algumas interpretações preliminares com base nas evidências genéticas, arqueológicas e espaciais. No caso dos sacrifícios femininos, a presença de mulheres em tumbas de indivíduos de alto status pode estar relacionada à veneração de ancestrais e à ideia de acompanhamento na passagem para o além. Nessa leitura, essas mulheres funcionariam como figuras associadas à continuidade da linhagem e à memória dos governantes.
Já os crânios masculinos depositados sob o Portão Leste parecem conectados a cerimônias de construção ou renovação de estruturas defensivas. Em muitas sociedades antigas, práticas de deposição de restos humanos em fundações de muralhas e edifícios eram usadas como forma de “selar” a obra, invocando proteção espiritual para o espaço. Em Shimao, esse papel parece ter sido atribuído majoritariamente a homens, o que pode refletir associações culturais entre masculinidade, guerra e defesa do território.
Quais são as principais descobertas genéticas sobre Shimao?
Além das diferenças de gênero nos rituais, o estudo de DNA antigo trouxe dados importantes sobre a composição populacional de Shimao. As 169 amostras analisadas incluíram 144 indivíduos não aparentados, vindos tanto da cidade quanto de assentamentos vizinhos, inclusive ao sul. As análises revelaram:
- Forte ligação genética interna entre vítimas de sacrifício, ocupantes de tumbas de elite e moradores comuns, indicando que todos faziam parte de uma mesma comunidade ampliada;
- Conexões genéticas com assentamentos meridionais, sugerindo movimentos populacionais complexos, possivelmente envolvendo migrações, casamentos entre grupos e redes de contato de longa distância;
- Ausência de sinais claros de origem estrangeira entre os homens sacrificados no “poço de crânios”, afastando a hipótese de que fossem prisioneiros de guerra de outras regiões.
Essa combinação de dados sugere que o sacrifício humano em Shimao não se limitava a inimigos capturados. Em vez disso, integrava um sistema ritual interno, no qual o próprio corpo social era mobilizado para reforçar estruturas de poder, crenças religiosas e fronteiras territoriais.
O que o caso de Shimao indica sobre as sociedades da Idade da Pedra?
Os resultados obtidos em Shimao colaboram para revisar algumas ideias amplamente difundidas sobre sacrifícios humanos na Pré-História. O predomínio de vítimas masculinas no “poço de crânios” contrasta com a visão, antes comum, de que rituais desse tipo eram majoritariamente voltados à submissão de mulheres. Em vez de um modelo único, o que aparece é uma paisagem ritual complexa, na qual gênero, status social e local de enterramento se combinam de maneiras específicas.
Ao indicar que homens sacrificados eram membros da própria comunidade e que mulheres eram enterradas em contexto de elite, o estudo aponta para uma sociedade em que o sacrifício humano estava profundamente integrado às formas de organização política, parentesco e culto aos mortos. Assim, Shimao se torna um caso-chave para compreender como, há mais de quatro mil anos, diferentes papéis de gênero eram inscritos não apenas na vida cotidiana, mas também nas práticas extremas ligadas à morte e ao poder.
FAQ sobre sacrifícios humanos
1. O que os arqueólogos consideram “sacrifício humano” em termos técnicos?
Arqueólogos definem sacrifício humano como a morte intencional de uma pessoa em um contexto ritual, religioso ou político, na qual o corpo (ou partes dele) é depositado de forma deliberada em um local significativo. Não se trata apenas de violência ou assassinato comum; é uma prática inserida em um sistema simbólico. Portanto, a identificação depende da combinação de evidências: posição do corpo, tratamento diferenciado dos restos, associação com arquitetura ou oferendas e padrões que se repetem em um sítio ou região.
2. Como os pesquisadores distinguem sacrifício de execuções ou mortes em batalha?
Essa distinção é complexa e exige múltiplas linhas de evidência. Em suma, mortes em batalha costumam ser identificadas por traumas compatíveis com combate e deposições mais caóticas, enquanto execuções podem aparecer em contextos punitivos, sem necessariamente ter oferendas ou significado religioso claro. Já o sacrifício tende a ocorrer em espaços cerimoniais, com arranjos padronizados dos corpos, seleção específica de indivíduos e, muitas vezes, associação com construções monumentais. Portanto, o contexto arqueológico é fundamental.
3. Em que tipos de contextos arquitetônicos o sacrifício humano costuma aparecer além de muralhas e tumbas?
Sacrifícios humanos podem ser encontrados na fundação de templos, pisos de praças cerimoniais, altares, plataformas rituais e até em reservatórios de água sagrada, dependendo da cultura. Em algumas sociedades mesoamericanas, por exemplo, restos sacrificiais aparecem em degraus de pirâmides e próximos a esculturas de deuses. Portanto, a arquitetura funciona como um “palco material” no qual a morte ritual reforça a sacralidade e a autoridade das construções. Então, a associação entre corpo e pedra é recorrente na arqueologia mundial.
4. O sacrifício humano sempre esteve ligado à religião?
Na maior parte dos casos conhecidos, há uma dimensão religiosa ou cosmológica, pois as vítimas são oferecidas a divindades, ancestrais ou forças sobrenaturais. Entretanto, isso não exclui motivações políticas: muitos sacrifícios também servem para demonstrar poder, intimidar rivais ou reforçar hierarquias internas. Portanto, religião e política caminham juntas, e o sacrifício pode ser visto como um ponto de encontro entre crenças espirituais e estratégias de dominação social.
5. Que métodos científicos além do DNA são usados para estudar sacrifício humano?
Os pesquisadores utilizam antropologia física (análise dos ossos), datações por radiocarbono, estudos de isótopos estáveis (para dieta e mobilidade), análises de microvestígios nos sedimentos e técnicas de imagem como tomografia. Entretanto, a interpretação depende também da comparação com fontes etnográficas e históricas, quando disponíveis. Portanto, a arqueologia do sacrifício é altamente interdisciplinar, combinando ciências naturais e humanas. Então, o quadro final resulta da convergência de vários tipos de dados.
6. O sacrifício humano era sempre forçado ou podia haver algum grau de voluntariedade?
Há relatos e hipóteses de indivíduos que teriam se oferecido voluntariamente, especialmente em sociedades onde o sacrifício era visto como honra extrema ou caminho para um status especial após a morte. Entretanto, é muito difícil demonstrar arqueologicamente a voluntariedade, pois os ossos não registram escolhas subjetivas. Portanto, do ponto de vista científico, assume-se em geral que se trata de violência letal institucionalizada, mesmo que, em certas culturas, isso pudesse ser interpretado socialmente como um ato de devoção.
7. Como o estudo de sacrifícios humanos ajuda a entender gênero e poder em sociedades antigas?
A escolha de quem pode ou deve ser sacrificado revela expectativas sociais sobre masculinidade, feminilidade, idade e status. Quando certos grupos (homens jovens, mulheres ligadas a elites, crianças) são selecionados de modo recorrente, isso indica como a sociedade distribuía valor e funções simbólicas entre corpos diferentes. Portanto, analisar padrões de gênero nos sacrifícios permite mapear hierarquias, papéis familiares e modos de legitimar governantes. Então, os sacrifícios funcionam como um espelho extremo da ordem social cotidiana.
8. O sacrifício humano foi uma prática isolada de poucas culturas ou algo relativamente disseminado?
As evidências indicam que práticas de sacrifício humano ocorreram em diversas partes do mundo e em períodos distintos, desde a Pré-História até sociedades históricas complexas. Entretanto, isso não significa que fosse universal nem contínuo; muitas comunidades nunca adotaram esse tipo de ritual ou o abandonaram ao longo do tempo. Portanto, o sacrifício deve ser entendido como uma entre várias maneiras possíveis de lidar com o sagrado, o poder e a violência, e não como uma etapa “obrigatória” da evolução social.
9. O estudo de casos como Shimao muda a forma como o público vê a Pré-História?
Em suma, sim: casos como Shimao mostram que sociedades da Idade da Pedra podiam ser altamente organizadas, com complexos sistemas simbólicos e divisões de gênero sofisticadas. Entretanto, eles também quebram estereótipos simplistas de “barbárie irracional”, ao revelar regras, padrões e lógicas internas nos rituais de morte. Portanto, a Pré-História passa a ser vista como um período de grande diversidade cultural, com escolhas morais e políticas diferentes das atuais. Então, esses achados convidam a refletir criticamente sobre violência, poder e religião ao longo do tempo.










