Justiça

Crime com padrão racial

Juíza do Paraná conclui, em sentença, que réu negro fazia parte de quadrilha "em razão de sua raça" e provoca reação da OAB e do CNJ. Corregedor nacional pediu investigação sobre o caso. Em nota, magistrada afirma que frase pode ter provocado "dubiedades" e se desculpa

Sarah Teófilo
postado em 13/08/2020 01:15

A decisão de uma magistrada se tornou um dos assuntos mais comentados nas redes sociais ontem, com reação de juristas e de instituições. A juíza Inês Marchalek Zarpelon, da 1ª Vara Criminal do Tribunal de Justiça de Curitiba (TJPR), citou uma questão de raça em uma sentença, afirmando que o réu era “seguramente integrante do grupo criminoso, em razão da sua raça”. O homem, Natan Vieira da Paz, de 42 anos, é negro.

O caso é um processo envolvendo nove réus, no qual Natan foi denunciado pela prática de furto, roubo e organização criminosa. A investigação apontou envolvimento do homem e outras pessoas em roubos e furtos em praças públicas de Curitiba. Na sentença, cita-se que Natan é conhecido como “Neguinho”.

Em depoimento, um policial civil diz que “o grupo tentava parecer e se identificar como pessoas com aparência comum da população”. O policial afirma que um integrante era um “senhorzinho” de bigode; outro usava óculos “e parecia mais intelectual, tentando parecer um professor”. “Fugindo desse padrão, estava Natan, que era magro e negro, e de fácil identificação, e por isso acredita que ele possuía o encargo de despistar, estando sempre na cobertura”, diz o policial.

A sentença é de junho, mas ganhou repercussão após a advogada de Natan, Thayse Pozzobon, denunciar o caso nas redes sociais. “Associar a questão racial à participação em organização criminosa revela não apenas o olhar parcial de quem, pela escolha da carreira, tem por dever a imparcialidade, mas, também, o racismo ainda latente na sociedade brasileira”, pontuou a defensora.

Para ela, “um julgamento que parte dessa ótica está maculado”. “Fere não apenas meu cliente, como toda a sociedade brasileira. O poder Judiciário tem o dever de não somente aplicar a lei, mas também, através de seus julgados, reduzir as desigualdades sociais e raciais. Ou seja, atenuar as injustiças, mas jamais produzi-las como fez a magistrada ao associar a cor da pele ao tipo penal”, escreveu Thayse.

Ao Correio, a advogada disse: “Achei isso o cúmulo. O processo discute crimes patrimoniais, e isso não cabe interpretação de raça. Por isso a minha indignação”, afirmou.
Natan foi condenado a 14 anos e dois meses de reclusão, mas poderá recorrer em liberdade. O TJPR informou, em nota, que a Corregedoria-Geral do Tribunal “instaurou procedimento administrativo para apurar fatos noticiados pela imprensa relativos à sentença proferida pela juíza”.

Dubiedade
Em nota, a juíza Inês Marchalek Zarpelon defendeu-se. Disse que “em nenhum momento houve o propósito de discriminar qualquer pessoa por conta de sua cor”. “O racismo representa uma prática odiosa que causa prejuízo ao avanço civilizatório, econômico e social. A linguagem, não raro, quando extraída de um contexto, pode causar dubiedades. Sinto-me profundamente entristecida se fiz chegar, de forma inadequada, uma mensagem à sociedade que não condiz com os valores que todos nós devemos diuturnamente defender”, escreveu em nota publicada no site da Associação dos Magistrados do Paraná (Amapar).

“Em nenhum momento a cor foi utilizada — e nem poderia — como fator para concluir, como base da fundamentação da sentença, que o acusado pertence a uma organização criminosa. A avaliação é sempre feita com base em provas. A frase foi retirada, portanto, de um contexto maior, próprio de uma sentença extensa, com mais de cem páginas”, garantiu.

Inês não explicou, no entanto, o que quis dizer ao falar sobre a raça de Natan, citada em três momentos diferentes na sentença dele. “Reafirmo que a cor da pele de um ser humano jamais serviu ou servirá de argumento ou fundamento para a tomada de decisões judiciais. O racismo é prática intolerável em qualquer civilização e não condiz com os valores que defendo. Peço sinceras desculpas se, de alguma forma, em razão da interpretação do trecho específico da sentença (pág. 117), ofendi a alguém”, escreveu a juíza.

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CNJ cobra providências; OAB declara repúdio

 (crédito: Sergio Amaral)
crédito: Sergio Amaral

O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) pediu à Corregedoria-Geral do Tribunal de Justiça do Paraná (TJPR) que apure os fatos relativos à sentença proferida pela juíza Inês Marchalek Zarpelon no prazo de 30 dias, e que seja remetido ao CNJ o resultado da apuração. O pedido de providências foi feito pelo corregedor nacional de Justiça, ministro Humberto Martins.

Ainda ontem, a Ordem dos Advogados do Brasil do Paraná (OAB-PR) repudiou a fundamentação da magistrada. “A afirmação é inaceitável e está na contramão do princípios constitucional da igualdade e da não discriminação. Cor e raça não definem caráter e jamais podem ser utilizadas para fundamentação de sentença”, informou. O órgão diz que solicitou ao TJ e ao Ministério Púbico providência para a apuração dos fatos.

A Defensoria Pública do estado do Paraná também divulgou nota de repúdio à fundamentação da magistrada. “Não se pode tolerar, de nenhuma forma e de quem quer que seja, que a raça ou a cor da pele de uma pessoa seja motivo de valoração negativa ou influencie presunções sobre sua conduta e sua personalidade, tampouco que fundamente juízo condenatório ou maior repressão penal”, frisou o órgão.

A defensoria também convocou defensores públicos para a formação de uma força-tarefa a fim de verificar se há outros casos similares proferidos pela mesma juíza e que não vieram a público nos últimos 12 meses.

Presidente da Comissão Nacional de Promoção da Igualdade (CNPI) da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Silvia Cerqueira afirma que, independentemente do crime que a pessoa tenha cometido, a postura não é adequada para “alguém que está como preposto do Estado para fazer justiça”.


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