"Mortes poderiam ter sido evitadas"

Sem provas, Bolsonaro diz que hidroxicloroquina poderia ter poupado a vida dos mais de 100 mil mortos por covid-19 no país. Presidente afirma, também, que Anvisa facilitará acesso a medicamentos defendidos por ele

INGRID SOARES AUGUSTO FERNANDES BRUNA LIMA MARIA EDUARDA CARDIM
postado em 14/08/2020 00:49
 (crédito: Alan Santos/Editor JC/JD)
(crédito: Alan Santos/Editor JC/JD)

O presidente Jair Bolsonaro falou, ontem, pela primeira vez, sobre a marca das 100 mil vidas perdidas desde que o número foi atingido no último fim de semana. Contudo, em vez de se solidarizar com as famílias das 105 mil vítimas da pandemia no país até o momento, ele disse que os óbitos teriam sido evitados caso os pacientes tivessem se medicado com hidroxicloroquina desde o início do diagnóstico. O presidente afirmou, ontem, em sua live semanal, que a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) teria liberado a compra de cloroquina com uma receita médica comum.

Mesmo reconhecendo que não há nenhum estudo científico que comprove a eficácia da medicação contra a covid-19, o presidente comentou que ele é a “prova viva” de que o remédio pode combater a enfermidade. Em julho, Bolsonaro contraiu o novo coronavírus e fez um tratamento à base da hidroxicloroquina. Ele recebeu o diagnóstico em 7 de julho e se disse curado da doença em 25 de julho.

A fala do presidente aconteceu durante cerimônia, na capital do Pará, que marcou a inauguração do Parque Urbano Belém Porto Futuro. “Destinamos a esse estado maravilhoso, mesmo sem comprovação científica, mais de 400 mil unidades de hidroxicloroquina para o tratamento precoce da população. Sou a prova viva que deu certo. Muitos médicos defendem esse tratamento e sabemos que mais de 100 mil pessoas morreram no Brasil. Caso tivessem sido tratadas lá atrás, poderiam essas vidas terem sido evitadas. E mais ainda: aqueles que criticaram a hidroxicloroquina não apresentaram alternativa”, declarou Bolsonaro.

O presidente voltou a repetir, também, que sempre alertou sobre a necessidade de combater o vírus e o desemprego causado pela pandemia da covid-19. "Sabemos que a vida não tem preço, mas o desemprego leva à depressão e leva, também, à doença e à morte", declarou.

Garoto-propaganda
Mais tarde, durante a transmissão semanal que faz em suas redes sociais, Bolsonaro anunciou que a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) facilitará o acesso à hidroxicloroquina e à ivermectina, medicamentos defendidos por ele para tratamento do novo coronavírus, mesmo sem ter eficácia comprovada para a doença. A partir de agora, segundo o presidente, não será mais necessária a retenção da receita no local da compra. “O presidente da Anvisa, o almirante Barra, acabou de confirmar a informação sobre a hidroxicloroquina e a ivermectina. Você já pode comprar com uma receita simples, caso o seu médico recomende para você, obviamente”, disse Bolsonaro. Até o momento, era necessária a apresentação de receita em duas vias. Agora, será preciso apenas uma que poderá ficar com o comprador.

Mais cedo, o ministro da Saúde interino, Eduardo Pazuello, falou que a pasta não tem estoque de hidroxicloroquina para atender à demanda reprimida de estados e municípios. O medicamento normalmente é prescrito para malária e doenças autoimunes. Segundo o ministro, a pasta já distribuiu 5,3 milhões de doses do remédio. “Nosso estoque hoje, no Ministério da Saúde, é zero. Não temos nem um comprimido para atender às demandas. Nós temos uma reserva de 300 mil itens apenas para atender à malária guardados, que representa algo em torno de 20% do que eu preciso por ano”, disse ontem, durante audiência pública no Congresso. “Temos uma demanda reprimida de mais de 1,6 milhão de doses para estados e municípios, só hoje.”

No mês passado, a maior pesquisa conduzida no Brasil sobre o uso da cloroquina para tratar a covid-19, feita pelo grupo Coalizão Covid-19 Brasil, mostrou que o medicamento é ineficaz em casos leves e moderados da doença. Além disso, o remédio não reduz a taxa de óbito e está ligado a maior risco de arritmia e lesão hepática.

Recuperados
Os altos números da covid colocam o país em segundo lugar no ranking mundial das nações mais afetadas pela covid-19, no entanto, não são evidenciados no discurso do Ministério da Saúde, que prefere destacar apenas o número de recuperados da doença. Para o ministro interino da Saúde, Eduardo Pazuello, o índice de pessoas curadas evidencia “o acerto das ações do governo brasileiro em resposta à pandemia”.

Ontem, o general omitiu o número de infectados e de mortos pela doença no discurso proferido no encontro semanal promovido pela Organização Mundial da Saúde (OMS). Horas depois, voltou a ignorar os números ao participar da comissão mista do Congresso Nacional que acompanha as ações do governo no enfrentamento do vírus. “Até o final do dia de ontem (quarta), o Brasil contabilizava 2.310.000 de casos recuperados da covid- 19. Estamos entre os líderes mundiais em pacientes recuperados, o que evidencia o acerto das ações do governo brasileiro em resposta à pandemia”, afirmou Pazuello, antes de apresentar as ações do ministério aos parlamentares.

Em sua primeira fala na comissão mista, o ministro interino disse, ainda, que a “resposta brasileira está acontecendo em estrito comprimento ao regulamento sanitário internacional”.


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60 mil casos em 24 horas

O Brasil registrou pela terceira vez desde o início da pandemia mais de 60 mil casos em 24 horas. O país só tinha batido a marca em outras duas ocasiões, no fim de julho. O balanço diário do Ministério da Saúde confirmou, ontem, mais 60.091 infecções e 1.262 mortes pela covid-19, totalizando 3.224.876 de casos confirmados e 105.463 óbitos.

A curva de casos e mortes da doença permanece em um alto patamar. Com cerca de 100 municípios sem registros, o país contabiliza quase 80% de unidades federativas com mais de mil vidas perdidas por covid-19. Somente seis estados ficaram de fora dessa lista: Rondônia (993), Amapá (609), Acre (574), Mato Grosso do Sul (570), Roraima (561) e Tocantins (493).

Quem lidera o ranking de fatalidades no Brasil é São Paulo, com 26.324 mortes pelo novo coronavírus. O Rio de Janeiro vem em segundo, somando 14.412 vítimas da doença. Outros 18 estados e o Distrito Federal integram o grupo com mais de mil óbitos: Ceará (8.088), Pernambuco (7.084), Pará (5.917), Bahia (4.202), Amazonas (3.435), Minas Gerais (3.846), Maranhão (3.228), Espírito Santo (2.823), Paraná (2.576), Rio Grande do Sul (2.584), Mato Grosso (2.245), Rio Grande do Norte (2.036), Paraíba (2.092), Goiás (2.213), Alagoas (1.721), Distrito Federal (1.905), Sergipe (1.670), Piauí (1.566) e Santa Catarina (1.696).

Regiões
Região mais afetada pela covid-19, o Sudeste concentra mais de um terço dos casos (1.124.404) e 45% das mortes (47.405). Na sequência, aparecem Nordeste (996.038 contaminações e 31.687 óbitos), Norte (464.039 e 12.582, respectivamente), Centro-Oeste (333.136 e 6.933) e Sul (307.259 e 6.856).

Em números totais, o Brasil fica somente atrás dos Estados Unidos. De acordo com o Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC, na sigla em inglês), são 5.176.018 de infecções em solo norte-americano (56.307 a mais do que quarta) e 165.148 mortes — 1.497 registradas em 24 horas.

Até o momento, 2.356.640 pessoas recuperaram-se da covid-19 no Brasil. Atualmente há 762.773 pacientes em acompanhamento. (BL e MEC)

SP ajusta balanço
O estado de São Paulo teve, desde o início da pandemia, 26.324 mortes causadas pelo novo coronavírus. O número inclui, além das 234 mortes registradas desde o último boletim, 221 óbitos que ocorreram no decorrer da pandemia. Em nota, o governo paulista afirma estar seguindo “as novas diretrizes do Ministério da Saúde aos estados e municípios, que prevê, agora, confirmação clínica”. Ao todo, o estado tem 674.455 mil casos confirmados de covid-19. Desses, 79,4 mil tiveram de se internar e conseguiram se recuperar. Atualmente, o índice de ocupação dos leitos das unidades de terapia intensiva (UTI) é de 58% no estado e de 56,8% na Grande São Paulo. São 5,4 mil pessoas internadas em UTIs com covid-19 e 7,2 mil em enfermaria, totalizando 12,6 mil pacientes hospitalizados.

Fé na vacina em meio à falta de medicamento

Enquanto faltam medicamentos para tratar pacientes graves de covid-19 em hospitais, todas as fichas brasileiras foram apostadas no futuro das vacinas que, apesar de promissoras, podem não se tornar uma realidade tão cedo. Ontem, uma nova candidata tailandesa entrou para o rol de tratativas e, com isso, há pelo menos seis iniciativas estudadas no Brasil. A demanda atual, no entanto, é por remédios para tratar vítimas da pandemia que morrem sem conseguir atendimento adequado.

Na comissão mista do Congresso Nacional para tratar a crise, o ministro interino da Saúde, Eduardo Pazuello, admitiu a falta dos remédios e informou sobre a abertura de um novo pregão para sanar o problema. “Não vou dizer que não faltou medicamento nesse ou naquele município. Sim, houve faltas. No momento que as faltas chegaram para nós, fizemos o que podia ser feito e o que não podia ser feito para apoiar. Nesse aspecto, não tiro daí a responsabilidade dos estados e municípios. Nunca se negaram a fazer sua parte. Quando chega para nós, é porque já está no limite deles também”, afirmou o general.

Para tentar sanar a falta e melhor distribuir os insumos, o Ministério da Saúde publicou, na quarta-feira, um novo pregão para que governadores e prefeitos detalhem as carências. A ideia é acompanhar de perto a distribuição para buscar o equilíbrio. “Vamos ter uma ação nas empresas para mostrar a linha de prioridade, para que não haja um estado com estoque, enquanto outro estado fica faltando”, explica o interino.

Dos quase R$ 42 bilhões em recursos destinados exclusivamente para o combate ao novo coronavírus, R$ 20 bilhões chegaram, de fato, nas mãos dos estados e municípios, ou seja, menos da metade da verba. Em relação à quantidade de medicamentos distribuídos pelo ministério, Pazuello detalhou uma lista que soma 19,4 milhões de unidades, sendo mais de 5 milhões apenas de comprimidos de cloroquina. Mesmo assim, o ministro afirmou que o governo federal não conseguiu atender a nem 50% das demandas do medicamento sem comprovação científica usado no tratamento contra a covid-19. “Coloco de uma forma bem clara que nós atendemos às demandas, nós não distribuímos sem demanda”, destacou.

Nova aposta
Com um esquema consolidado de imunização nacional, o Brasil aposta nas descobertas científicas para virar a página da crise de saúde provocada pela covid-19. Depois do flerte com a iniciativa russa, entra para o rol de conversas uma fabricante tailandesa. “Recebi uma outra empresa norte-americana, com sede de fabricação na Tailândia, que também trouxe a possibilidade. Mas, também, com prazos um pouco mais dilatados e que vai ficar pronta no terceiro, quarto mês de 2021. Mesmo assim, estamos em negociação, também, para ver se isso cresce, se acelera e se a gente pode participar”, detalhou Pazuello.

Pazuello detalhou, ainda, que o ministério acompanha as tratativas entre o governo de São Paulo e a farmacêutica chinesa Sinovac. No entanto, a vacina britânica de parceria entre a farmacêutica AstraZeneca com o Oxford segue como a principal aposta da pasta. “Vamos fazer a contratação, acredito, até sexta-feira da semana que vem, já com o empenho de recursos. E isso vai no caminho deste segundo semestre (...). Essa é a mais promissora, mas a gente não deixa de estar atento a todas as outras para, rapidamente, também, entrar com outra compra.” (BL e MEC)

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