Entrevista Bárbara Coloniese

"Superlotação nas cadeias, uma tortura usual, se tornou um vetor de morte"

Em entrevista ao Correio, Bárbara Coloniese, coordenadora-geral do Movimento Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, analisa a situação nos presídios brasileiros durante a pandemia

Jorge Vasconcellos
postado em 17/08/2020 06:00
 (crédito: Arquivo pessoal)
(crédito: Arquivo pessoal)

Até o último dia 10 de agosto, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) contabilizou 15.569 presos infectados por covid-19 no sistema prisional brasileiro, em uma população carcerária de 755 mil pessoas. O CNJ registrou 89 mortes de sentenciados pela doença. A contaminação também afeta os servidores – foram registrados 73 óbitos e 6.908 infecções –, segundo o boletim mais recente divulgado pelo órgão regular da Justiça. A superlotação, problema crônico no sistema carcerário, tornou-se um fator crítico em tempos de pandemia. “A aglomeração nos presídios, mais do que um vetor de tortura, torna-se, em plena pandemia, um vetor de morte”, afirma Bárbara Suelen Coloniese, coordenadora-geral do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT), órgão vinculado ao Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos (MDH). Ela reclama da baixa aplicação da recomendação do CNJ e de nota técnica do governo que tratam de medidas de prevenção da covid-19 no sistema carcerário. Publicadas em março, elas orientam os juízes a concederam prisão domiciliar para detentos do grupo de risco, além de presas que tenham filhos de até 12 anos. Perita grafotécnica, formada pelo Universidade da Polícia Federal Argentina, em Buenos Aires, Bárbara, de 37 anos, lamenta o atraso do Brasil na questão carcerária. Para ela, as penitenciárias refletem o caráter segregacionista da sociedade brasileira. “Nosso sistema judicial criminaliza a pobreza. Quem está encarcerada é a nossa juventude pobre e negra”, diz a coordenadora do MNPCT. A seguir, os principais trechos da entrevista de Bárbara Coloniese ao Correio.

Um relatório do MNPCT informa que, dos 755 mil presos do país, apenas 32,5 mil haviam recebido, até o fim de junho, o benefício de prisão domiciliar para grupos de risco. Como avalia isso?
É uma adesão extremamente baixa. Nós temos um sistema prisional superlotado. O Supremo Tribunal Federal já declarou que o sistema prisional é um estado de coisa inconstitucional. Reiteradas autoridades nacionais e internacionais comparam o sistema prisional brasileiro às masmorras medievais. Então, como é que a gente vai aplicar um plano de contingência, com isolamento, assepsias e EPIs, em um ambiente de superlotação? É impossível. Falta vontade jurídica, política, falta o compromisso do Judiciário com a dignidade humana, com a vida humana. Porque nesse momento, a superlotação, um vetor de tortura usual, torna-se, hoje, um vetor de morte. Se a gente não consegue combater a superlotação nesse momento, não consegue implementar nenhum plano de contingência.

Entre todos os casos de presos pesquisados, quais chamaram mais a sua atenção?
No Rio Grande do Sul há uma presa provisória, transexual. Está em um presídio superlotado, que não tem ala LGBT. Foi presa por um crime cometido sem violência, ultrapassou os 90 dias detida. O presídio não tem unidade básica de saúde, está superlotado. Ou seja, ela tem todas as características dispostas na Recomendação nº 62 do CNJ para ser liberada. No entanto, não foi atendida. Não raro, casos de mulheres já em idade avançada que estão em presídios por crimes sem violência, em prisão provisória há muito mais do que 90 dias, e não são liberadas. Outra situação no Rio Grande do Sul: o caso de uma pessoa que teve um AVC, está neste momento completamente paralisada, fazendo uso de fralda geriátrica, perdeu a visão, tem ataques de epilepsia e, mesmo assim, o indulto humanitário solicitado foi negado porque há o entendimento dos juízes de que esses detentos recebem melhor tratamento no presídio do que em casa.

O que a senhora diz sobre a grande quantidade de presos mantidos em viaturas da polícia, no Rio Grande do Sul, por causa da falta de vagas no sistema?

Eu estive em Porto Alegre. O Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura lançou um relatório recentemente dessa visita conjunta ao Rio Grande do Sul, porque tem muitos presos em viaturas. Essa condição permanece e, nesse momento de pandemia, os órgãos fiscalizadores não estão realizando inspeções, o que acaba propiciando o aumento de violação de direitos nesse período de pandemia. Em Novo Hamburgo, deparamos com outra situação escandalosa: os presos não estavam dentro de viaturas, mas do lado de fora da delegacia, onde tinha uma corda amarrada a um poste, e uns dez presos estavam acorrentados ao longo dessa corda. Eles estavam jogados ao chão, em cima de uma terra suja, com um cheiro muito forte de urina, porque os brigadianos (PM) os levavam para urinar por ali mesmo. As condições de higiene são bastante precárias. Como as carceragens de delegacias não têm chuveiro, só o 'boi' [buraco no chão, no linguajar dos presos] eles ficam ali dias sem tomar banho. Dentro das viaturas eles ficam trancados, no calor, sem poder respirar direito, sem acesso a alimentação, porque na carceragem da delegacia não tem isso.

Como está a situação do Presídio Central de Porto Alegre?

No Presídio Central foi pedido indulto humanitário. Lá dentro os presos se autogovernam, porque não existem condições de haver uma fiscalização adequada. Os brigadistas só entram até um ponto. Se passarem desse ponto, a gente nem sabe o que acontece, por conta das facções do local, um problema em todo o sistema carcerário nacional. Foi pedido um indulto humanitário no Presídio Central de Porto Alegre, com 4.300 pessoas presas, mas foram contempladas apenas 50 detentos. Qual o impacto disso?

Qual a melhor forma de prevenir a covid-19 nos presídios?

O ideal seria tratar dessas pessoas contemplando o isolamento dos casos suspeitos, dos casos contaminados, e entre os próprios contaminados. O ideal seria desafogar o sistema prisional, na perspectiva de combater a superlotação para poder dar um tratamento digno, adequado para preservar a vida dessas pessoas. Com o país tendo 41,5% de presos provisórios, aguardando julgamento, a gente tem um grande problema. E questão da prisão provisória tem que ser melhor pensada.

A ida do ex-assessor parlamentar Fabrício Queiroz e do ex-ministro Geddel Vieira Lima para a prisão domiciliar gerou acusações de seletividade por parte do Judiciário. Qual sua opinião sobre isso?

O sistema prisional é para criminalizar a pobreza e tem uma seletividade punitivista altíssima. Quem está encarcerada é a nossa juventude negra. É para esse pessoal que o sistema prisional brasileiro serve. Segundo a socióloga Dina Alves, o processo de passagem da escravidão para a democracia compõe-se por uma tríade: a senzala, a favela e, finalmente a prisão. Isso é fortíssimo. A gente sabe que a prisão é para poucos. Há um público muito bem delimitado para as prisões brasileiras.

A situação atual dos presos durante a pandemia é equiparável a uma forma de tortura?

Completamente. A Lei nº 9.455, de 1997, coloca os elementos que configuram a tortura. Estamos vivendo uma crise sanitária mundial que nos deixa mais ansiosos, nervosos, sofremos um impacto psicológico muito grande. Imagina as pessoas que estão lá, sem saber se os seus familiares estão bem, os familiares sem saber do estado dessas pessoas que estão presas, isso é extremamente torturante. Quando a gente fala em tortura, não pode pensar só na tortura física. Tem a tortura psicológica, também. A aglomeração, mais do que um vetor de tortura, torna-se, em plena pandemia, um vetor de morte.

Como avalia a atuação do governo federal em relação ao sistema carcerário?

Desastrosa. Não existe política preventiva. Quando não se tem uma política preventiva, é certo de que haverá um índice desastroso de mortes muito elevado. Todos os dias recebo informações dos estados sobre pessoas contaminadas. A partir do momento que aumentar a quantidade de testes — e o número de testes ainda é muito insuficiente — aparecerão novos casos. As autoridades têm dito que não há o que fazer, porque não dá para isolar. A responsabilidade é de todos. O Judiciário tem pecado muito, porque se todos seguissem a Recomendação 62 do CNJ, que fala dessa perspectiva de desafogamento, de combate à superlotação, de implementar um plano de contingência dentro do sistema prisional, nós teríamos mais êxito. Mas, do jeito que as prisões estão superlotadas, precárias, sem EPI (equipamento de proteção individual), sem nada, a gente não vai conseguir.

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