VIOLÊNCIA

Assassinato de negros sobe 11,5% em 10 anos

Atlas da Violência escancara a vulnerabilidade de parte da população: a cada não negro morto em 2018, 2,7 negros morreram. Dados revelam, ainda, que 68% do total de mulheres que perderam a vida são pretas e pardas

Renata Rios
postado em 27/08/2020 23:54
 (crédito: WILTON JUNIOR)
(crédito: WILTON JUNIOR)

Os assassinatos caíram 12% em 2018 no Brasil, com registro de 57.956 mil homicídios. O número corresponde a 27,8 mortes por 100 mil habitantes. A queda, contudo, é desproporcional na população do país. Entre os negros, a taxa de homicídio aumentou 11,5%, enquanto para os não negros, houve redução de 12,9%. Dados revelados, ontem, pelo Atlas da Violência 2020, mostram que 75,7% das vítimas são negras, o que representa uma taxa de 37,8 mortes por 100 mil habitantes. Entre os demais (brancos, amarelos e indígenas), a taxa despencou para 13,9. Isso significa que, para cada não negro assassinado em 2018, foram mortos 2,7 negros.

Foram analisados microdados do Sistema de Informação sobre Mortalidade, do Ministério da Saúde, de mais de 628 mil assassinatos entre os anos de 2008 e 2018. O resultado do estudo elaborado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, segundo especialistas, pode ser explicado pelas condições socioeconômicas da população negra, que as expõem mais frequentemente à violência, assim como o racismo que estigmatiza uma parcela da população e impõe sobre ela um uso de força desmedida. Ligado a esses fatores também está a cooptação dos mais vulneráveis pelas facções criminosas, cujas disputas de território e poder são marcadas pelos assassinatos em série.

Conselheira do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Isabel Figueiredo acredita que seja possível ver os resultados apresentados, ontem, com do is olhares complementares. “São esses dois vieses, o fenômeno mostra como a sociedade é estruturada. Mas a manutenção disso, do ponto de vista da segurança, tem a ver com a falta de políticas específicas”, avalia. De acordo com os dados levantados, no ano de 2018, 68% das mulheres assassinadas no Brasil eram negras. Entre as mulheres não negras, a taxa de mortalidade por homicídios no último ano foi de 2,8 por 100 mil, contra 5,2 homicídios por 100 mil pretas e pardas. “A mulher negra, em especial a mulher negra e pobre, é muito vulnerabilizada. Isso é levado em conta em diversas análises, não só do ponto de vista da segurança pública.”

A especialista pondera que é preciso investimento em políticas públicas para conseguir alterar essa realidade. “A gente junta em uma personagem uma série de motivos de exclusão. Assim como a gente tem o racismo estrutural, a gente tem, também, o machismo estrutural característico da nossa sociedade”, observa a especialista.

Apesar do número de homicídios femininos ter diminuído 8,4% entre 2017 e 2018, ao se analisar o cenário da década, é possível ver que a situação melhorou apenas para as mulheres não negras e que se acentuou entre as pretas e pardas. Os dados deixam ainda mais clara essa diferença quando apontam que, entre 2017 e 2018, houve uma queda de 12,3% nos homicídios de mulheres não negras; para as mulheres negras, essa redução foi de apenas 7,2%. Se analisada em relação ao período de 2008 a 2018, a diferença acentua-se novamente: “enquanto a taxa de homicídios de mulheres não negras caiu 11,7%, a taxa entre as mulheres negras aumentou 12,4%”, informa o material.

Dentro de casa
O Atlas da Violência aborda, também, o feminicídio e apresenta dados sobre as mortes em casa e por arma de fogo. “A taxa de homicídios na residência segue outro padrão: enquanto a taxa ficou constante entre 2008 e 2013, aumentou 8,3% entre 2013 e 2018, havendo estabilidade entre 2017 e 2018”, compara o texto, em relação à taxa de homicídios ocorridos fora da residência da vítima. “O Atlas tem um papel muito importante de trazer uma luz nesse sentido. É falar: ‘olha, não dá para falar só de feminicídio. É importante falar de feminicídio, mas é importante, também, falar que o feminicídio é um fenômeno que tem cor, tem classe social’”, avalia Isabel.

Por região
Em uma visão mais ampla, englobando toda a população negra, os números mostram que a população negra foi extremamente atingida pela violência no Brasil na última década. Entre os negros, a taxa de homicídio aumentou 11,5%. Para os demais, houve uma queda de 12,9%. Os dados ainda mostram que, em 2018, 75,7% das vítimas de homicídios eram negras, ou seja, para cada um não negro assassinado morreram 2,7 negros.

Entre os estados, aqueles que concentram as maiores taxa de homicídios contra pessoas negras pertencem às regiões Norte e Nordeste do país. “Roraima foi a unidade da federação com a maior taxa em 2018 (87,5), vindo, em seguida, Rio Grande do Norte (71,6), que ocupava a primeira posição no Atlas da Violência 2019, Ceará (69,5), Sergipe (59,4) e Amapá (58,3)”, enumera o texto. Ao se analisar o percentual de crescimento das taxas de homicídio, o Acre ocupa a primeira colocação, com 300,5% de aumento. Na sequência vem Roraima, 264,1%; Ceará, 187, 5%; e Rio Grande do Norte, 175,2%.

“A população negra, historicamente, se enquadra em um ambiente social e econômico que já a desfavorece em relação à violência”, pontua Leonardo Sant’Anna, especialista em segurança pública. Ele destaca ser preciso mais investimento por parte do governo para tentar equilibrar a desigualdade no país. “Quando se trata de uma violência estrutural, nós temos, sim, o Estado como corresponsável por isso. Quando esses investimentos deixam de ser feitos, o Estado é um responsável indireto e é muito complexa de ser feita essa correção sem um repensar social, sem que haja uma participação social mais efetiva”, destaca.

24 horas de terror no Rio: tiroteios, invasões e mãe assassinada
Um confronto entre facções rivais pelo controle do tráfico em um conjunto de favelas na região central do Rio de Janeiro foi marcado por tiroteios nas ruas, criminosos armados em fuga — em duas ocasiões, eles invadiram residências e fizeram reféns — e deixou pelo menos quatro mortos. Uma das vítimas da guerra pelo Complexo do São Carlos foi Ana Cristina da Silva, de 25 anos. A caminho do trabalho, ela morreu atingida por dois tiros de fuzil ao tentar proteger com o corpo o filho de apenas 3 anos. Policiais militares também intervieram e trocaram tiros com criminosos. Mataram três suspeitos, prenderam 16 homens e apreenderam armas. Pelo menos cinco pessoas — um policial, três suspeitos e um civil — ficaram feridas. O conflito começou na tarde da quarta, entrou pela noite de anteontem e madrugada de ontem e foi até o fim da tarde.

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Curso para investigar feminicídios

Agentes de segurança pública brasileiros terão de incorporar às práticas diárias um novo requisito: o olhar diferenciado para conduzir casos em que a mulher é a vítima. Após a apresentação do Protocolo Nacional de Investigação e Perícias nos Crimes de Feminicídio a representantes de organismos internacionais de combate à violência contra a mulher, o Ministério da Justiça tem pressa para colocar o próximo passo em prática: a elaboração de um curso de capacitação para os profissionais da área.

“É preciso saber olhar. Não adianta fazer um texto e não instruir os profissionais para saberem lidar com aquele documento. O protocolo está aí, posto, publicado, mas a gente precisa capacitar. Essa foi a determinação do ministro (da Justiça, André Mendonça) e é nisso que vamos nos engajar”, afirmou ao Correio o delegado Evandro Luiz dos Santos, membro da equipe técnica do ProMulher, programa da Secretaria de Gestão e Ensino em Segurança Pública do Ministério da Justiça.

Na apresentação feita a representantes da ONU Mulheres, do Ministério Público e de entidades da área, o ministro André Mendonça destacou os projetos de capacitação. O encaminhamento define que técnicos da pasta trabalhem na elaboração de dois cursos: um, mais geral, destinado a todos os profissionais; e outro, específico e mais técnico, para aqueles que atuam diretamente na área em questão.

Lançado em junho, o protocolo determina a instauração imediata de inquérito policial nos casos de morte violenta de mulheres e dá aos atendimentos prioridade para realização de exames periciais. Segundo o delegado Evandro dos Santos, “é um guia prático, com a observação de detalhes, tanto para policiais que vão até o local quanto para peritos”. “Precisamos plantar a semente da mudança de comportamento, que precisa ser tanto na sociedade, quanto nos profissionais de segurança pública.”

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