entrevista

"Trabalho infantil cresceu na pandemia", diz procuradora Ana Maria Villa Real

Com o aumento do desemprego e da vulnerabilidade econômica, procuradora dá como certo o agravamento da prática. Villa Real fala, também, sobre evasão escolar em meio à crise: "Muitas crianças e adolescentes podem nunca mais voltar"

Renata Rios
postado em 04/09/2020 06:00 / atualizado em 04/09/2020 09:57
 (crédito: Daniel Coelho Moutinho/NBastian/Divulgação TJDFT)
(crédito: Daniel Coelho Moutinho/NBastian/Divulgação TJDFT)

Com raízes na profunda desigualdade social e na falência das políticas públicas, o trabalho infantil é uma chaga no Brasil. A prática criminosa impede crianças e adolescentes de se desenvolverem de forma sadia, protegida e digna, além de impactar nos estudos das vítimas, resultando em baixo rendimento e evasão escolar. Para discutir o que vem sendo feito para enfrentar a situação, o Correio entrevistou a coordenadora nacional do Combate à Exploração do Trabalho da Criança e do Adolescente do Ministério Público do Trabalho, Ana Maria Villa Real.

A procuradora do Trabalho no Distrito Federal destaca que, apesar de faltarem dados atualizados sobre o problema, ele segue muito presente no Brasil e poderá se agravar em razão da pandemia.

Villa Real afirma que a exploração de crianças e adolescentes ocorre, em grande parte, de formas ocultas pela sociedade, seja nas ruas, doméstico, no tráfico de drogas ou na exploração sexual comercial de menores. “É uma questão de que precisamos falar. Ninguém tem uma solução. É uma questão desafiadora, mas, quanto mais a gente falar, mais ideias vão surgir para tentar solucionar e montar um fluxo de assistência.”

 


Qual a situação do trabalho infantil, hoje, em meio à pandemia?
É presente e está cada vez mais presente com o aumento da vulnerabilidade socioeconômica decorrente da pandemia. A sociedade brasileira não valoriza a infância. Além do adultocentrismo, temos, também, o fato de que o trabalho infantil pode parecer, para a sociedade em geral, uma ótima solução para o filho do pobre. A gente não tem dados recentes, o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) ainda não divulgou uma nova pesquisa nacional por amostra de domicílios. A última foi de 2016, divulgada em 2017. Desde então, a gente não tem dados atualizados, dados estatísticos oficiais. Então, a gente trabalha com os dados de 2016, que são de 2,4 milhões de crianças e adolescentes de 5 a 17 anos em situação de trabalho infantil. Mas, a gente sabe que o trabalho infantil, como é um reflexo da pobreza estrutural, com o aumento do desemprego e da vulnerabilidade econômica, vai aumentar.

Trabalho infantil é invisibilizado no país?
Sim, o trabalho infantil nas ruas, o trabalho infantil doméstico, o trabalho infantil no tráfico de drogas, a exploração sexual comercial de crianças e adolescentes. Criança e adolescente não se prostituem, a decisão de se prostituir requer autonomia e nós não presumimos que eles têm autonomia. Crianças e adolescentes são vítimas da exploração sexual.

A pandemia pode prejudicar crianças e adolescentes, que, por condições diversas, estão abandonando os estudos?
Não temos nada de estatísticas oficiais; temos o que as pessoas veem na rua, por exemplo, muitas crianças e adolescentes na rua. Muito se deve, também, ao movimento de estar fora da escola, mas é claro que se associa uma coisa a outra. Temos receio de que muitas crianças e adolescentes não voltem a estudar. Temos estudos que mostram isso. Dizem que essa pausa da pandemia vai trazer um atraso de até dois anos no desenvolvimento. É uma situação que, para as crianças e adolescentes de classe média, classe média alta, eles conseguem recuperar com o tempo. Porém, com filhos de famílias de baixa renda, não se recupera.

Qual o papel da escola para afastar a criança do trabalho infantil?
A gente faz um trabalho nas escolas com os educadores. As escolas são os ambientes mais capilarizados no Brasil e o professor está ali, convive com o aluno diariamente. Esses atores, os educadores, são fundamentais na prevenção e no enfrentamento ao trabalho infantil. As escolas podem realizar diagnósticos de trabalho infantil, o professor consegue identificar aquele aluno que está com baixo rendimento, que está faltando em sala de aula, que dorme em sala. Ele consegue fazer esse diagnóstico. O que fazemos no Ministério Público do Trabalho é exatamente capacitar os educadores para essa questão do trabalho infantil. Falar o que é, as piores formas, os marcos normativos, os mitos, as barreiras sociais que envolvem o trabalho infantil. Temos aquela série de frases: “trabalhar não mata ninguém”, “trabalhar dignifica”, “o menino precisa ajudar em casa”, “trabalhar forma caráter”. Todos esses mitos que vamos lá tentar desconstruir, falar da realidade: trabalho infantil mata, sim, e também causa acidentes muito graves. Falamos das causas e consequências desse tipo de trabalho.

Recentemente, o presidente Bolsonaro comentou: “Bons tempos, né? Quando o menor podia trabalhar”. Qual o impacto de declarações como essa?
Ele desfaz um trabalho de desconstrução de anos, de sensibilização e esclarecimento, que é feito em torno das consequências do trabalho infantil e dos direitos da criança e do adolescente. Não tem nada pior para o coletivo do que quando uma pessoa dá sua experiência pessoal, que é uma coisa ruim, como positiva. Se ele trabalhou no passado, quando criança e, hoje, é um caso de sucesso, isso não é a realidade majoritária, são casos isolados. Todo mundo que trabalha quando criança tem consequência na vida adulta. O legado que esse tipo de fala deixa é justamente uma desconstrução de todo um trabalho, é desinformação de um trabalho que está sendo feito por diversas instituições e de todos os órgãos integrantes de uma rede de proteção.

Notícias pelo celular

Receba direto no celular as notícias mais recentes publicadas pelo Correio Braziliense. É de graça. Clique aqui e participe da comunidade do Correio, uma das inovações lançadas pelo WhatsApp.


Dê a sua opinião

O Correio tem um espaço na edição impressa para publicar a opinião dos leitores. As mensagens devem ter, no máximo, 10 linhas e incluir nome, endereço e telefone para o e-mail sredat.df@dabr.com.br.

Os comentários não representam a opinião do jornal e são de responsabilidade do autor. As mensagens estão sujeitas a moderação prévia antes da publicação