Segundo país mais afetado com casos e mortes pela covid-19 no mundo e referência latino-americana nas discussões de saúde internacional, o Brasil não tem representantes nos comitês que avaliam a resposta da Organização Mundial da Saúde (OMS) frente à pandemia. Nas reuniões que começaram hoje (8), 23 especialistas da área representam os países mais influentes, fazendo análises da gestão da emergência pela entidade e estudando mudanças nas estratégias de condução. A ausência de brasileiros, na avaliação de especialistas, é mais uma clara demonstração de como a politização da crise e a consequente desvalorização da ciência afastaram o país da importante cúpula de debate.
A colisão entre o Brasil e a OMS se iniciou já no começo da pandemia, com os diferentes posicionamentos entre os pares, afirma o especialista em políticas públicas da Fundação Getúlio Vargas (FGV) Daniel Vargas. "Foram inúmeras as divergências entre lideranças brasileiras e orientações da OMS: técnicas, sobre a efetividade da cloroquina; políticas, sobre priorização da economia; e pessoais, como críticas do à própria capacidade do Diretor-Geral da OMS. Tudo isso, aliado ao elevado número de mortos pela Covid-19 no Brasil, acabou por minar a posição do país nas discussões de saúde internacionais", explica.
Por outro lado, muitas das críticas às respostas da entidade precisam ser feitas para melhorar a atuação frente à crise de saúde mundial, opina Vargas. "A verdade precisa ser dita: a OMS errou feio na pandemia, e tem errado sistematicamente, há muitos anos, na orientação da saúde internacional". Um olhar negativo em relação à atuação da OMS tem sido constantemente reforçado pelo presidente Jair Bolsonaro, o que explica porque nomes brasileiros acabam por serem evitados.
Nas transmissões pelas redes sociais e em entrevistas a jornalistas, Bolsonaro por diversas vezes reforça a crítica. “A nossa OMS está deixando muito a desejar. Fala-se tanto em foco na ciência, o que menos tem de ciência é a OMS, parece que não acerta nada”, disse em uma das live em junho. Dias antes, o mandatário havia criticado os trabalhos "com viés ideológico" da entidade e dito que o governo poderia deixar a organização. “Os Estados Unidos saíram da OMS, e a gente estuda, no futuro, ou a OMS trabalha sem viés ideológico, ou vamos estar fora também. Não precisamos de ninguém de lá de fora para dar palpite na saúde aqui dentro”. Em maio, o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, anunciou o rompimento da parceria norte-americana e congelou repasses que seriam feitos.
No comitê para reformar os procedimentos da OMS, no entanto, há representantes dos Estados Unidos, além de especialistas de grandes potências como China, Japão, Rússia e Índia. "Inicialmente foi uma pressão feita pelos Estados Unidos tendo como alvo a China, então esse painel foi, de certo modo, constituído para fazer a avaliação de maneira imparcial da resposta internacional à crise", afirma o doutor em Direito Internacional pela USP e professor da FGV Evandro de Carvalho. Apesar do Brasil ser referência na rede colaborativa entre países da América Latina, pela região é uma representação do Chile que incorpora o grupo de técnicos.
"Como o governo vai fazer parte dessa comissão para avaliar a resposta a crise se o entendimento deste país, no caso Brasil, foge completamente dos padrões mínimos de exigência do tratamento da covid?", questiona Carvalho. Para ele, o viés ideológico estaria vindo da própria gestão Bolsonaro. " A resposta dada pelo governo brasileiro é muito baseada em um entendimento ideológico. Há uma postura contrária ao multilateralismo e, consequentemente, ao papel das organizações internacionais de forma geral. Isso faz com que o Brasil perca cada vez mais a sua voz, sua credibilidade e a sua relevância perante a esses organismos que estão dentro de uma política externa maior", explica.
Mesmo em meio às falas de Bolsonaro, membros da OMS procuraram não tecer críticas públicas à forma com que o governo brasileiro conduz a crise provocada pela covid-19, optando, por outro lado, em reforçar a necessidade de colaboração entre países. Nos últimos dias, no entanto, o diretor-executivo da OMS, Michael Ryan, respondeu a um questionamento sobre as atitudes do presidente brasileiro frente à pandemia e, sem citar o nome nome do país, mandou um recado de que informações distorcidas ou manipuladas irão se "virar contra quem as está disseminando".
Ao reforçar a necessidade de transparência, consistência e veracidade das informações, Ryan reiterou: "Bons governos ganham a confiança da população com informações confiáveis", completando que há boas lideranças brasileiras atuando dessa forma.
Mesmo assim, nenhuma representação brasileira foi aprovada. A pressão era para que o ex-ministro da Saúde Nelson Teich assumisse uma posição, mas sem clima e diante da condução brasileira que vai de encontro a diversas recomendações da OMS, o país ficou de fora, situação que foi interpretada como uma derrota diplomática brasileira.
O comitê avalia o funcionamento do Regulamento Sanitário Internacional (RSI) durante a pandemia e poderá recomendar mudanças, Um relatório preliminar será apresentado em novembro e o final, em maio de 2021. Entre as discussões está a de se a OMS emitiu tardiamente ou não o alerta da situação de emergência em saúde diante da covid-19.
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