Quando a política é inimiga da ciência

Estudo da Universidade de Brasília mostra a desconfiança dos brasileiros — em particular, de apoiadores de Bolsonaro — às vacinas produzidas pela China e pela Rússia. Especialistas condenam a politização sobre os imunizantes, essenciais para frear a pandemia

Bruna Lima
postado em 22/10/2020 00:50

A politização em torno da vacina contra a covid-19 se intensifica de tal forma que estabelece favoritismo mesmo não havendo, ainda, nenhuma candidata com eficácia e segurança comprovadas oficialmente. No mesmo dia em que o governador de São Paulo, João Doria, veio a Brasília para acertar detalhes sobre a Coronavac, produzida pela farmacêutica chinesa Sinovac em parceria com o Instituto Butantan, o presidente Jair Bolsonaro negou que irá comprá-la, fazendo o Ministério da Saúde recuar com o anúncio de aquisição. O embate, porém, não para em uma guerra política, mas tem poder de interferir na intenção de imunização dos brasileiros, sobretudo ao se diferenciar a origem da candidata.

Um estudo feito pelo Centro de Pesquisa em Comunicação Política e Saúde Pública da Universidade de Brasília (CPS/UnB) revela que o número de pessoas que pretende tomar as doses diminui em 16,4% ao se tratar da candidata chinesa e 14,1% em relação à russa. Para a avaliação, 2.771 entrevistados foram separados em cinco grupos: um em que não foram feitas perguntas distinguindo a origem da vacina, e os outros quatro especificando a produção vinda da China, Rússia, Estados Unidos e da Universidade de Oxford, na Inglaterra.

Ao comparar os números com aqueles que não fazem distinção da nacionalidade com os que fazem, observou-se redução na casa de 15% na avaliação das candidatas chinesa e russa, enquanto a americana e a inglesa tiveram metade da rejeição (7,9% e 7,4%, respectivamente). “Esse dado sugere uma desconfiança de parte da população brasileira com a vacina, presente inclusive entre pessoas que estão muito preocupadas com a doença”, diz Wladimir Gramacho, coordenador do estudo e do CPS.

No entanto, ao incorporar à análise levando em consideração quem é apoiador do presidente Jair Bolsonaro, apenas 27% afirmam ter muita chance de se vacinarem se a substância for produzida na China. A quem faz oposição ao governo, essa porcentagem dobra (54%), mesmo com uma vacina produzida na China. Os números indicam, portanto, a influência da política, mesmo que haja confirmação da eficácia e segurança científica dos imunizantes. “O uso da pandemia e da vacina na disputa entre as elites políticas brasileiras tem sido, em si, uma ameaça à saúde pública”, afirma Gramacho, que alerta: “o mais importante é que haja uma recomendação clara e consistente de todas as autoridades a favor da vacinação”. Mesmo com o discurso de Jair Bolsonaro em ressaltar que a imunização não será obrigatória a nenhum cidadão, 78,1% dos entrevistados ouvidos pelo estudo da Universidade de Brasília (UnB) disseram ter alguma ou muita chance de se vacinar.

A insistência do governo federal quanto à obrigatoriedade da vacinação pode trazer consequências ao enfrentamento da covid, como destaca o especialista em gestão de Saúde e professor da Fundação Getulio Vargas (FGV) Walter Cintra. “A obrigatoriedade de vacinação contra o covid-19 é uma possibilidade prevista na lei sancionada pelo próprio presidente no começo do ano. Logo, não há razão para se trazer essa discussão à baila neste momento, exceto por proselitismo político em um embate entre o presidente e governador de São Paulo, mais preocupados com suas agendas eleitorais do que com o interesse público”, critica.

Enfatizar o viés político em um momento em que a saúde está em jogo é considerada uma tática irresponsável e dolosa pelo especialista. “Manifestações de um dirigente político contra o programa de vacinação brasileiro, na minha opinião, deveriam ser consideradas crime de responsabilidade e implicar em ações para o seu impedimento”, afirmou Cintra, destacando que, antes de se discutir o que entrará ou não no PNI, é preciso que haja a real aprovação de uma imunização eficaz e segura.

Imunização coletiva
Após o efetivo registro de uma vacina, o virologista Flávio da Fonseca, da Universidade Federal de Minas Gerais e do Centro CT-Vacinas, destaca que a única chance de se criar um bloqueio contra a covid-19 é uma imunização coletiva e abrangente. “A alternativa que a gente tem para realmente bloquear as nossas zonas de ocorrência, diminuir o espalhamento e evitar novas ondas da doença é a vacinação de massa. Muito mais do que um instrumento individual de saúde, é um instrumento coletivo de saúde pública”.

O virologista destaca que, do ponto de vista técnico, uma aplicação compulsória seria a melhor estratégia para garantir o alcance de mais pessoas, fazendo funcionar a barreira contra a infecção. “No entanto, é necessário observar as questões éticas relacionadas à obrigatoriedade da vacina e criar mecanismos legais para fortalecer esse movimento”. Apesar de a legislação brasileira prever a obrigatoriedade de vacinas infantis, inclusive sendo um dos requisitos, por exemplo, para continuidade de repasse de auxílio a beneficiários de programas sociais, a determinação legal não ocorre com adultos.

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Morre médico voluntário

 (crédito: Leopoldo Silva/Agência Senado - 15/7/19)
crédito: Leopoldo Silva/Agência Senado - 15/7/19

Um médico de 28 anos participante dos estudos da vacina de Oxford, no Rio de Janeiro, e que atuava na linha de frente de combate à covid, morreu em decorrência da doença. A morte aconteceu na última quinta-feira (15/10), mas a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) apenas confirmou o óbito ontem. Tanto os dados pessoais do voluntário quanto os das investigações sobre o caso são mantidos em sigilo, mas as informações são de que ele teria recebido placebo.

Depois de confirmar a morte do voluntário, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) anunciou que os ensaios clínicos do imunizante não serão paralisados. O presidente da agência, Antônio Barra Torres, disse que o Comitê Internacional de Avaliação de Segurança que analisa a eficácia de todas vacinas em teste para o novo coronavírus sugeriu que o Brasil continuasse com o estudo. A Anvisa informou que foi notificada do caso na segunda-feira (19).

Segundo Antônio Torres, a Anvisa ainda não tinha informações para confirmar se o voluntário recebeu uma dose da vacina de Oxford ou de placebo. “No protocolo da vacina está prevista a confidencialidade ética em relação a tudo que envolve os voluntários participantes de testes. Os termos de confidencialidade são patenteados, então determinadas informações são imediatamente passadas e outras, não. Daí a escassez, pelo menos neste momento, de maiores detalhes", explicou o presidente da Anvisa.

Enquanto a informação não for confirmada, o Comitê Internacional de Avaliação de Segurança não vai recomendar a paralisação dos testes, segundo a Anvisa. “Tivemos a notificação do comitê internacional independente, que concluiu pela possibilidade do prosseguimento dos testes. De posse dessa informação, a vacina permanece em contínua análise e, no momento, os testes prosseguem”, afirmou Torres, que lamentou a morte. “A nossa palavra pessoal é de solidariedade para com a família desse brasileiro, desse volutuário que faleceu. É um momento muito difícil e muito delicado. Portanto, nos solidarizamos com a família”, disse Torres.

Em 8 de setembro, o estudo clínico da vacina de Oxford teve de ser interrompido em todo o mundo após uma voluntária britânica que recebeu uma dose do imunizante apresentar uma inflamação na medula espinhal, conhecida como mielite transversa.

Os testes foram retomados quase uma semana depois, em 14 de setembro, depois de um processo de revisão feito pelas autoridades à frente da elaboração da substância. Os especialistas constataram que não ficou comprovado o nexo de causalidade entre a vacina e a infecção.

Estudo randomizado

Responsável por conduzir os testes no Rio de Janeiro, o Instituto D’Or de Pesquisa e Ensino (Idor) não informou ao Correio se o voluntário recebeu a dose do imunizante ou placebo. Isso porque os estudos seguem a metodologia randomizada, ou seja, quando se controla dois grupos em situações semelhantes, em que um recebe a dose da substância avaliada e o outro, não. “Seguindo normas internacionais de pesquisa clínica e respeitando os critérios de confidencialidade dos dados médicos, não podemos confirmar publicamente a participação de nenhum voluntário no estudo clínico com a Vacina de Oxford”, informou o Idor. No entanto, esclareceu que as avaliações incluem 20 mil participantes nos testes ao redor do mundo e que “todas as condições médicas registradas foram cuidadosamente avaliadas pelo comitê independente de segurança, pelas equipes de investigadores e autoridades regulatórias locais e internacionais”.

Apesar da confirmação da morte de um dos candidatos brasileiros, o Idor descartou “qualquer dúvida com relação à segurança do estudo”. No Brasil, até o presente momento, já foram vacinados aproximadamente oito mil voluntários.

O voluntário na testagem da vacina da AstraZeneca no Brasil era um médico carioca, recém-formado, que trabalhava na linha de frente do atendimento à covid-19 em hospitais públicos e particulares no Rio de Janeiro. Ele adoeceu em setembro e morreu na quinta-feira, de complicações da doença. Em nota, a Universidade Federal do Rio de Janeiro, onde o médico se formou em julho do ano passado, disse que, embora ele tivesse acabado de se diplomar, “não poupou esforços para atuar no enfrentamento da pandemia”.

 

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