Do plasma à terapia gênica

Correio Braziliense
postado em 23/10/2020 01:52
 (crédito: Reprodução/CB/D.A Press)
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Convidada da edição do Correio Talks sobre os avanços no tratamento da hemofilia, a diretora da Divisão de Hematologia do Departamento de Clínica Médica da Universidade de Campinas, Margareth Ozelo, traçou um panorama das terapias desenvolvidas e as perspectivas do cenário brasileiro. Ela ressaltou, primeiramente, os dois conceitos mais conhecidos para o tratamento da hemofilia.

O primeiro é chamado de tratamento por demanda. É aplicado para impedir o sangramento que acomete o portador de hemofilia mediante a aplicação de proteínas coagulantes. Essa técnica é a mais antiga e tem benefícios limitados, pois exige aplicações frequentes de injeções e prejudica a qualidade de vida do paciente. O segundo tipo de tratamento, denominado profilaxia, já constitui um avanço terapêutico. Nesse caso, o paciente recebe a proteína deficiente, de forma a manter o nível de coagulação necessário na corrente sanguínea e evitar sangramentos.

Margareth ressaltou que o tratamento de profilaxia também tem desafios a superar. Ela cita, por exemplo, o tempo de permanência das proteínas inseridas na circulação sanguínea do paciente. “Hoje, nós temos várias tecnologias chamadas fatores de longa duração, que fazem com que esse fator de coagulação fique mais tempo na circulação. Um paciente que precisava de três ou duas infusões por semana, com uma única infusão por semana, ele consegue reter o mesmo nível de proteção. No entanto, os produtos de Fator 8 de longa duração, hoje disponível, não tiveram o mesmo resultado”, comparou.

Margareth também comentou sobre novos tratamentos, como a terapia gênica. “O princípio é o seguinte: nos tratamentos já citados, a gente repõe a proteína ou uma molécula para fazer a ação e recuperar a coagulação. No caso da terapia gênica, a ideia é, ao invés de uma proteína, repor a sequência do DNA que está deficiente naquele paciente, para uma célula que vai ajudar a produzir a proteína. A grande diferença, aqui, é que nos outros tratamentos, se forem interrompidos, você perde o efeito. No caso da terapia gênica, se houver sucesso, as células que receberam essa sequência de DNA sempre produzirão a proteína, sem a necessidade de outras infusões”, detalhou a diretora do Departamento de Clínica Médica da Unicamp.

Segundo Margareth Ozelo, a terapia gênica é capaz de manter níveis contínuos de fatores da coagulação para prevenir o sangramento. Uma única infusão bem-sucedida traz estabilidade ao paciente. “Não há dúvida de que vários avanços aconteceram no Brasil, principalmente nos últimos 10 anos”, concluiu a doutora. Ela disse esperar que esse tratamento esteja disponível no Brasil em breve. “O mais importante de tudo, que sempre gosto de frisar, é que temos que garantir que todos tenham acesso ao tratamento”, ressaltou a especialista.

Alinhada ao ponto de vista de Margareth Ozelo, a presidente da Federação Brasileira de Hemofilia (FBH),Tania Pietrobelli, também defendeu a universalização das soluções terapêuticas. “No trabalho da Federação Brasileira de Hemofilia, a nossa missão é advogar pelo melhor tratamento para todos. Porque não adianta privilegiar uns e deixar outros de lado”, disse a presidente.

O presidente da Divisão Farmacêutica da Bayer no Brasil e América Latina, Adib Jacob, destacou as pesquisas da empresa no desenvolvimento da terapia gênica. “Temos vários projetos avançados em terapia gênica, de forma que, em um futuro próximo, poderemos estar continuamente contribuindo no tratamento dessa patologia com novas plataformas de tratamento”, disse.


Glossário

Coagulação
Processo que forma coágulos para estancar o sangramento

Coágulo
É o sangue transformado em um tecido mais sólido, por meio da coagulação

Cromossomo
Estrutura da célula que contém o material genético

Hemartrose
Sangramento dentro de uma articulação

Hemopatias
Doenças do sangue

Hemostasia
É a resposta natural do corpo para prevenção e interrompimento de sangramentos

Plasma
É a parte líquida do sangue, na qual estão dissolvidos proteínas, sais minerais e gás carbônico, por exemplo.

Unidade per capita
Resultado de cálculo feito para determinar a quantidade de Fator VIII necessária para garantir a sobrevivência dos pacientes hemofílicos por ano.


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Família é fundamental na causa

 (crédito: Reprodução/CB/D.A Press)
crédito: Reprodução/CB/D.A Press

Um ponto fundamental no debate sobre hemofilia no Brasil é o esforço das famílias dos pacientes para garantir tratamento digno. “A Federação Brasileira de Hemofilia é a representação legítima e oficial da hemofilia no Brasil. Foi criada, em 1976, por um grupo de pais, que foram depois construindo associações em cada estado e filiando à Federação Brasileira de Hemofilia”, contou Tania Pietrobelli, presidente da Federação Brasileira de Hemofilia (FBH). “Hoje, temos 25 associações filiadas, associações estaduais, uma por estado”, acrescentou. Ela destacou que essas associações se mostram importantes, considerando-se as dimensões continentais do Brasil e a necessidade de se trabalhar em cada estado.

“O Ministério da Saúde, a Coordenação Geral de Sangue e Hemoderivados, o Tribunal de Contas da União, o Ministério Público, os hemocentros, os profissionais de saúde. Todo esse grupo sempre trabalhou, nesses 44 anos, em parceria. A gente se reúne para debater qual é a melhor solução para que o tratamento chegue a todos”, pontuou Pietrobelli. “Queria dizer aqui que a representação de pacientes é extremamente importante e que deve trabalhar sempre em parceria”, comentou.

A presidente relembrou a trajetória da causa hemofílica. Disse que, em 2009, o cenário brasileiro para os hemofílicos era de tratamento por demanda. “Unidos, esse grupo todo, chegamos ao Tribunal de Contas da União e pedimos para fazer uma avaliação do país, porque ainda não tínhamos o tratamento preventivo. O Tribunal de Contas da União chegou à conclusão de que se o tratamento da hemofilia tem um alto custo, o não tratar gera um custo ainda maior para o governo”, descreveu.

“A partir do contato da Federação Brasileira de Hemofilia, mostramos ao senador, ao presidente da comissão de orçamento, a importância de dar tratamento preventivo. Levamos imagens de pessoas que fizeram o tratamento preventivo e não desenvolveram sequelas e imagens de pessoas que não trataram e desenvolveram sequelas sérias. Mostramos que, além da dor e do sofrimento, também o custo era maior”, relatou. “Os senadores entenderam que era extremamente importante blindar e triplicar o orçamento. Já que naquela época nós tínhamos uma unidade per capita, que era tratamento de sobrevivência. Só não deixava morrer, mas as pessoas se tornaram deficientes físicas”, lembrou.

A partir daí, segundo Pietrobelli, a situação melhorou. “Em 2011 já conseguimos aumentar o orçamento e em 2012 já tínhamos o orçamento triplicado. Atingimos, então, três unidades per capita. Hoje, nós temos quatro unidades per capita graças à luta conjunta e o grande esforço da Federação Brasileira de Hemofilia”, complementou, destacando a importância da representação de pacientes. “Nós temos quatro unidades per capita e queremos chegar a seis unidades per capitas, que é o que é preconizado pela Federação Mundial de Hemofilia”, projetou. “Mas, para atingir as seis unidades per capita, nós precisamos da conscientização dos pacientes e familiares, também. Porque, se o paciente não fizer o tratamento conforme a prescrição, conforme a orientação médica e não participar dessa decisão, nós não podemos pedir para o governo aumento de unidades”, explicou.

Atualmente, o Brasil tem um sistema capilarizado, que possibilita acesso ao tratamento de qualidade para a população que demanda por ele. “Nós temos um fluxo que não existe em país nenhum. Nós temos a compra centralizada, pelo Ministério da Saúde, que distribuiu”, explicou Pietrobelli. “Esse fluxo vai para o Hemocentro coordenador, tem um Hemocentro coordenador em cada estado. Esse hemocentro coordenador distribui para os hemonúcleos no interior, para que esse tratamento chegue mais próximo da casa das pessoas”.

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