A professora Raíssa Vaz, 24 anos, é uma das milhares de pessoas que sofreram com a devastação causada pela pandemia de covid-19. Seu pai foi uma das 160.253 vítimas da doença no Brasil. Número difícil de mensurar a dor de cada parente e amigo ganha uma dimensão ainda maior neste Dia de Finados. A data, tradicionalmente marcada pela presença maciça de pessoas nos cemitérios, foi acompanhada de uma série de restrições e protocolos sanitários — assim como foram as perdas de todas essas vidas, a maioria delas sem direito à despedida. Hoje, foram contabilizadas mais 179 fatalidades ao balanço do Ministério da Saúde, além de 8.501 novos casos, totalizando 5.554.206 de infectados no país.
“Tivemos a sorte de o meu pai ter ficado em um hospital que se comunicava conosco o tempo todo. Mas, a parte mais difícil foi não poder sair de casa para visitá-lo”, comenta Raíssa, filha de José de Lima, que morreu aos 67 anos em decorrência da covid-19, após ficar internado por quase todo o mês de julho. “A doença é muito cruel, mas depois é tudo muito difícil. O enterro precisou ser muito rápido, sem a possibilidade de fazer várias coisas e sem dar tempo de a gente processar tudo”, lamenta.
A dor de Raíssa torna-se ainda mais intensa ao não poder ser compartilhada de perto com o irmão, devido ao isolamento social, já que moram em casas diferentes. A experiência delicada de ter acompanhado o pai na luta contra o vírus, com vários altos e baixos no quadro de saúde, deixa marcas. “A gente fica meio neurótica depois de perder uma pessoa próxima por essa doença, fica achando que vai morrer também”, relata.
De acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS), cada morte deixa de seis a 10 pessoas diretamente afetadas pela pandemia. Mas, muitas vezes, sem a chance de acompanhar o ente querido nos últimos dias de vida, tendo que se despedir sem a possibilidade de um velório, o efeito da perda tem impactos inéditos. O psicólogo Fernando Pessoa de Albuquerque, doutor em saúde mental e especialista em prevenção do suicídio, afirma que o processo do luto mudou, o que compromete a assimilação da morte e pode gerar problemas de saúde mental, como depressão.
Além disso, a superação das diferentes fases do luto — negação, raiva, barganha, depressão e aceitação —, fica comprometida. “Essas ritualizações sociais são muito importantes. Nos entristecermos coletivamente pelas 160 mil pessoas que morreram. É um modo de a gente entrar em contato com a finitude da vida. É importante a gente digerir esse fim para conseguir passar por um processo de aceitação dessa condição que o mundo inteiro está vivendo”, explica.
Outro ponto importante a ser trabalhado, devido às circunstâncias, é a culpa sentida por familiares e amigos que podem ter sido vetores da doença para pessoas que morreram. “Precisamos entender que a pandemia é um processo mundial e a gente não tem controle sobre isso. Aliviar os processos de culpa dos familiares vai ser um desafio coletivo”, avalia Albuquerque.
Despedidas alternativas
Para auxiliar o processo de luto, o psicólogo recomenda formas alternativas de ritualizar a despedida, por meio de cerimônias virtuais ou com lembranças nos túmulos das vítimas. Foi essa forma que Fabianna Accioly Bezerra Fortini encontrou para lidar com a dor de perder uma das melhores amigas, Ana Carolina Rigo Muller, aos 31 anos. A servidora pública organizou uma homenagem em que amigos e familiares puderam compartilhar lembranças e soltar balões, ao som das músicas preferidas da amiga, em frente ao prédio que ela morava. A ação ocorreu ao ar livre, com distanciamento e uso de máscaras.
“Me deu uma certa paz, porque conseguimos fazer essa despedida com alguma leveza”, conta Fabianna. Amigos próximos à Carol, como era chamada, também organizaram uma ação de solidariedade para ajudar abrigos que resgatam e cuidam de animais, uma paixão cultivada pela vítima. Atitudes que ajudam, mas nem sempre suprem completamente o luto. “Por mais que tenha feito a homenagem, a sensação de despedida é inacabada. É muito difícil não poder ver a pessoa para dar um ponto final”.
Aos que não têm a oportunidade de se despedir, o projeto Inumeráveis surgiu como alternativa para lidar com a perda criando um memorial virtual para homenagear as vítimas da covid-19. A plataforma traz os nomes e uma frase, em prosa, que representa a trajetória de cada um. Afinal, as vítimas não são números. Têm nomes, famílias, histórias e, hoje, são lembranças.
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