Pandemia

O emocionante abraço entre mãe e filha após família enfrentar UTIs e luto pela covid-19

Entre março e abril, quatro familiares de Camila, que moram em São Paulo (SP), foram internados em decorrência da covid-19

BBC
Vinícius Lemos - Da BBC News Brasil em São Paulo
postado em 24/12/2020 17:52

"Foi indescritível. Aquele momento representou tudo o que não pude fazer nos meses anteriores", diz a arquiteta Camila Benazzi sobre o abraço na mãe em 21 de outubro. Na data, as duas se reencontraram pela primeira vez após a família ser duramente afetada pela covid-19.

Entre março e abril, quatro familiares de Camila, que moram em São Paulo (SP), foram internados em decorrência da covid-19. Desses, três foram parar na Unidade de Terapia Intensiva (UTI). O pai dela não resistiu às complicações da doença.

Distante, Camila, que há quase dois anos vive na região metropolitana de Santiago, no Chile, acompanhou a situação vivida pelos familiares após serem infectados pelo novo coronavírus.

"Foi um período muito doído. Foi assustador passar por tudo isso. Dias antes, estavam todos bem, mas de repente tudo virou de cabeça pra baixo", diz a arquiteta à BBC News Brasil.

Camila, o marido e as filhas durante videochamada com os pais dela em 27 de março
Arquivo Pessoal
Camila, o marido e as filhas durante videochamada com os pais dela em 27 de março

O abraço em outubro marcou o recomeço para a família. A mãe voltou para o Brasil no mês seguinte, mas retornou ao Chile nesta semana, onde passará as comemorações de fim de ano.

"Estou muito feliz por estar perto da minha filha. Todos somos muito ligados. Foi gratificante reencontrá-la. Toda a família está muito mais unida agora, depois de tudo o que passamos", diz a mãe de Camila, a aposentada Aurea Maria de Toledo Benazzi, de 73 anos.

'Foi horrível estar longe'

Aurea e o marido, Egydio Benazzi, estavam juntos havia cinco décadas. Em março, planejavam viajar ao Chile para visitar Camila, a filha caçula do casal. Mas os planos mudaram em razão do coronavírus.

Segundo Aurea, ela e o marido começaram a se cuidar desde os primeiros registros de covid-19 no Brasil, no fim de fevereiro, e passaram a sair de casa somente para atividades essenciais.

Mas, ainda assim, a família foi afetada pelo coronavírus. A idosa foi a primeira a apresentar os sintomas da covid-19, em março. Na época, as medidas para conter a propagação do vírus ainda estavam em fase inicial. Não havia, por exemplo, a obrigatoriedade do uso de máscara.

"Eu acredito que contraí o vírus no supermercado, após uma pessoa que estava arrumando a prateleira dar um espirro 'quilométrico'. Até hoje penso que me infectei assim", diz a aposentada.

Em 17 de março, a idosa apresentou sintomas da covid-19, como febre e tosse. Em um hospital particular de São Paulo, um exame confirmou que ela havia sido infectada pelo coronavírus. O quadro de saúde dela piorou e Aurea foi levada para a Unidade de Terapia Intensiva (UTI).

Aurea e Edygio abraçados
Arquivo Pessoal
Aurea e Egydio estiveram juntos por cinco décadas. Ela se recuperou da covid-19, mas ele não resistiu às complicações da doença

Dias depois, Egydio, que tinha 78 anos, começou a apresentar sintomas como febre e dificuldades para respirar. No hospital, foi confirmado que ele também havia sido infectado pelo coronavírus.

Quando contraiu o vírus, Egydio estava em sua fase de saúde mais delicada. O idoso havia iniciado recentemente um tratamento contra um mieloma múltiplo, um tipo de câncer que afeta a medula óssea, e havia sido diagnosticado com Alzheimer, um dos tipos de demência mais comuns no mundo.

Em 27 de março, aniversário de 45 anos de Camila, o idoso e a esposa conseguiram se encontrar no hospital. Juntos, fizeram uma videochamada com a filha. Pela tela do celular, no Chile, Camila conversou com o pai pela última vez.

"Nesse dia, a minha mãe estava melhorando. Meus pais até cantaram parabéns. Eu estava bem emotiva e preocupada. Mas estava feliz pela melhora da minha mãe", relata Camila.

Dois dias após o aniversário da caçula, Egydio piorou. Ele foi encaminhado para a UTI e teve de ser intubado.

No início de abril, o filho do meio de Egydio e Aurea também apresentou quadro grave após ser diagnosticado com a covid-19. O homem, de 48 anos, foi internado na UTI.

Assim como o irmão, a filha mais velha do casal Benazzi também contraiu o coronavírus, mas teve sintomas leves e permaneceu isolada em casa. Já o filho dela, de 23 anos, precisou ser internado por apresentar sintomas mais intensos da covid-19 — dias depois, ele se recuperou e recebeu alta.

No Chile, Camila buscava informações frequentes dos familiares. "Foi horrível estar longe da minha família nesse momento. Eu não saía do sofá. Fiquei grudada no celular. Não tinha vontade de fazer mais nada. Estava desesperada", relata a arquiteta.

Ela cogitou vir ao Brasil para acompanhar os parentes, mas desistiu.

"Os casos de covid-19 estavam aumentando cada vez mais no Brasil e no Chile. Eu corria o risco de viajar e não conseguir retornar tão cedo, porque as fronteiras no Chile estavam fechadas. Assim, eu ficaria longe das minhas filhas", diz Camila.

"Cheguei a comprar passagem um dia depois de o meu pai ser intubado, mas foram tantos medos que desisti. O meu maior temor era voltar para o Chile e passar covid para o meu marido e para as minhas duas filhas. Fiquei em pânico com tantos pensamentos ruins e decidi que o melhor seria não viajar", relata a arquiteta.

Ainda no começo de abril, Aurea se recuperou e teve alta hospitalar. Mas Egydio piorou cada vez mais e morreu em oito de abril.

"O que eu vivi nesse período entre março e abril foi uma coisa assustadora. Foi muito difícil não ter vivido o luto do meu marido. Eu gostaria de estar segurando a mão dele naquele momento, mas não pude vê-lo nem no dia em que ele morreu", lamenta a idosa.

Família reunida no entorno de mesa
Arquivo Pessoal
Ao centro, Aurea e Egydio; ao redor estão os três filhos e o neto, de 23 anos. Registro foi feito em encontro em outubro de 2019

Em meio à dor da perda do marido, Aurea vivia a angústia por notícias do filho, que teve piora no quadro e precisou ser intubado pouco após a morte do pai. "Não tinha tempo para sofrer (pelo marido). Era uma coisa atrás da outra", diz Aurea.

Do Chile, Camila se desesperou pela morte do pai e pela situação do irmão. "Foram os piores dias das nossas vidas", define a arquiteta.

Após dias intubado, o irmão de Camila conseguiu se recuperar.

O abraço

Rodrigo Cotrim Moreira/Arquivo pessoal
Arquivo Pessoal
Família posa abraçada usando máscaras

Após a família viver a dura experiência do impacto da covid-19, um dos maiores desejos de Camila era abraçar a mãe. Porém, o reencontro entre as duas teve de ser adiado por meses, em razão das restrições de voos no Chile.

Camila, o marido e as duas filhas permaneceram em quarentena em Santiago — a arquiteta conta que eles não foram infectados pelo coronavírus. Já Aurea continuou em isolamento em São Paulo.

Quando o Chile começou a flexibilizar as medidas de isolamento social, Camila encontrou a oportunidade para reencontrar a mãe. "Em outubro, passaram a permitir que pais e filhos de residentes entrassem no país. Perguntei para a minha mãe se ela viria sozinha. Ela disse que sim. Então, organizamos a viagem em uma semana", diz.

Quando avistou a mãe descendo do táxi, nas proximidades de sua residência, Camila correu em direção a ela. Emocionadas, as duas se abraçaram. Em seguida, as filhas da arquiteta também participaram do abraço.

"Para mim, aquilo foi um prêmio", resume Aurea, que não via a filha desde dezembro de 2019. O momento foi registrado por Rodrigo Cotrim, marido de Camila.

No Chile, Aurea permaneceu em isolamento com a família da filha por 14 dias — determinação do país para pessoas que chegam de outros locais para evitar possível propagação do Sars-Cov-2, nome oficial do novo coronavírus.

Aurea permaneceu no Chile por um mês. Em meados de novembro, voltou para São Paulo. Na última segunda-feira (23/12), a idosa, o neto e a outra filha retornaram ao Chile para passar o fim de ano com a família de Camila.

Juntos, Aurea, os filhos e os netos passarão o primeiro Natal sem Egydio. Apesar da saudade do pai, Camila considera que ainda não assimilou a perda dele.

"Tenho a sensação de que vou chegar em São Paulo e o meu pai vai estar em casa, sentado e lendo o jornal, sempre no cantinho dele", diz, emocionada. "O meu maior medo é do momento em que eu for ao Brasil. Acredito que a partir de então entenderei o que realmente aconteceu", completa.

Já Aurea tem convivido diariamente com a falta do marido em casa. Desde a perda dele, a idosa quase não tem feito planos. "Não penso muito no futuro. Não sei como vai ser daqui para frente. Penso: estou aqui agora com eles e isso basta", comenta.

O único objetivo que ela afirma ter para o futuro é voltar a fazer ações voluntárias. "Gosto de fazer as minhas caridades com crianças com câncer. Mas agora, por conta da pandemia, não tenho conseguido", diz a idosa.

Desde a perda do companheiro, Aurea tem buscado apoio nos familiares. "Estou muito feliz de estar com eles neste momento", diz.

O abraço de 21 de outubro simbolizou a força da idosa para seguir em frente, acredita Camila. "Ela veio sozinha, se vestiu de coragem e amor em sua primeira viagem sem meu pai. Encheu o meu coração", escreveu a arquiteta em suas redes sociais, em outubro.


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