Crise no Amapá

Apagão no Amapá causa ao menos 8 mortes em meio ao descaso das autoridades

Pelo menos 8 pessoas morreram direta ou indiretamente por conta do blecaute que atingiu o Amapá – agora, famílias aguardam o ressarcimento prometido pelo presidente Bolsonaro

A manicure Danielle Silva, de 23 anos, só queria um ventilador naquela noite quente de novembro. Na verdade, ela queria energia elétrica para ligar o seu. Moradora da Comunidade Quilombola Lagoa dos Índios, na região metropolitana de Macapá (AP), Silva estava há cinco dias sem energia elétrica em casa. Como não conseguia dormir por conta do calor, saiu de moto para passar a noite na casa de um parente "sortudo" que tinha internet, televisão e ventiladores em funcionamento. Nunca mais voltou.

Sua moto foi atingida na estrada de acesso ao bairro Goiabal, onde a escuridão dominava e não havia nenhum tipo de sinalização para o trânsito, já que os semáforos estavam desligados por conta do blecaute. Morreu na hora. "Ela batalhava muito para estudar e trabalhar. Estava se formando em Física, tinha muitos sonhos. Disse em casa que não conseguia mais ficar sem dormir e precisava encontrar descanso", conta Danielson Nascimento Padilha, uma das lideranças da comunidade. Seu corpo só não foi velado no escuro porque familiares alugaram um gerador.

A manicure não foi a única. Pelo menos outras 7 pessoas morreram direta ou indiretamente por conta do apagão que atingiu o Amapá em 3 de novembro, quando uma explosão comprometeu três transformadores da Subestação Macapá e deixou 13 cidades no escuro. Se Danielle morreu na busca por um ventilador, duas das outras vítimas estavam trabalhando na manutenção da rede elétrica para garantir serviços básicos à população em meio ao blecaute.

Foi o caso de Jehoash Vitor Monteiro, de 24 anos. Nos primeiros dias do apagão que deixou 90% da população do Amapá no escuro, Jehoash ficou responsável por garantir acesso à internet de parte dos moradores de Porto Grande (102 km da capital). Sua função era cuidar do gerador de energia da empresa de fibra ótica Webflash. Graças a Jehoash, a cidade estava conectada, apesar de sem energia. 

No dia 6 de novembro, o técnico de informática chegou em casa às 20h, pediu dinheiro emprestado à mãe e saiu dizendo que precisaria trabalhar, pois estava de plantão. Nunca mais voltou. O corpo de Jehoash foi encontrado na sede da empresa, na manhã seguinte, ao lado do gerador e em uma sala sem ventilação. No atestado de óbito, consta morte por asfixia química.

"Se não tivesse acontecido o apagão, meu filho estaria vivo", lamenta Euzelia Maria Martins da Costa, mãe do jovem e professora do município de 20 mil habitantes. Não houve tempo para socorro, mesmo porque boa parte dos hospitais locais também estava sem luz. O dinheiro que Jehoash havia pedido era para comprar combustível para o gerador da própria empresa. 

Família de uma das vítimas do apagão no Amapá mostra o álbum de fotografia da formatura recente de Jehoash Vitor Monteiro, de 24 anos

Uma segunda vítima também trabalhava para garantir serviços básicos aos amapaenses. Trata-se de Sergio Cley, de 50 anos, que morreu quando realizava manutenção na rede de distribuição de energia na área rural de Macapá. Cley era funcionário do Consórcio Amapá Energia (CAE), que presta serviço à Eletronorte, e não resistiu depois de tomar um choque elétrico no transformador e cair de uma altura de seis metros. 

"Ele ficou quase duas horas sem socorro. O acidente foi por volta das 16h e eu cheguei lá primeiro que o socorro, que só veio às 18h30. Ele já estava morto. A empresa alega que ele estava fazendo bico, mas isso era mentira. Ele estava mexendo no transformador e estava em serviço com todos os Equipamentos de Proteção Individual (EPI). Temos testemunhas disso", diz Wesley Almeida, 24 anos, um dos quatro filhos de Cley, que também era líder da Comunidade Quilombola de São Francisco de Matapi, na área rural de Macapá. "A empresa nega que tenha sido acidente de trabalho, mas custeou o velório. Na hora do acerto pagaram apenas o salário dele, e disseram que a viúva não tinha sequer direito ao seguro-desemprego, pois não foi acidente de trabalho", completa Almeida.

Procurados pela Repórter Brasil, tanto Eletronorte quanto Consórcio Amapá Energia não retornaram sobre a morte de Sergio Cley. Já a Companhia de Eletricidade do Amapá (CEA), responsável pela distribuição de energia ao Estado, disse que "identificou que o caso se tratou de intervenção na rede elétrica sem autorização" e que a vítima não pertencia ao quadro de colaboradores de nenhuma empresa que presta serviço à companhia.

Segundo assessoria jurídica da Webflash, o acidente de Jehoash seria de responsabilidade da empresa Ap Import LTDA, da qual era funcionário. A Ap Import LTDA afirmou, em nota, que " houve o custeio integral de todas as despesas funerárias do funcionário, e que, em respeito à investigação atualmente conduzida pela Polícia Civil do Estado do Amapá, não comentará as circunstâncias do ocorrido". Um inquérito policial investiga se houve omissão por parte da empresa.

A crise sem fim e as promessas em vão

As autoridades demoraram a prestar atenção na crise energética que assolou o Estado. Durante mais de 20 dias, cerca de 765 mil pessoas ficaram isoladas sem acesso à internet e à telefonia. Foram mais de três semanas de incertezas, novos blecautes e um rodízio de energia em 13 cidades. 

Apesar da demora em reagir, promessas de ressarcimento dos danos à população foram feitas tanto pelo governo estadual quanto federal. Em lágrimas durante uma coletiva de imprensa em Macapá em 21 de novembro – 19 dias após o início do apagão –, o presidente Jair Bolsonaro chegou a prometer editar um decreto para reparar o povo do Amapá. 

Presidente Jair Bolsonaro chora durante coletiva em Macapá em 21 de outubro de 2020

"Todos os cidadãos serão ressarcidos. Não iremos deixar o povo sem apoio. Não haverá conta de luz em dezembro", disse durante as duas horas que ficou no Estado, em comitiva que contou com a presença do ministro das Minas e Energia, Bento Albuquerque, do senador David Alcolumbre (DEM), do chefe do Gabinete Segurança Institucional (GSI), general Augusto Heleno, e outros vinte membros de sua equipe.

Além da promessa de ressarcimento aos amapaenses, Jair Bolsonaro ligou um gerador termoelétrico de 2MW/h movido a combustível fóssil em uma das subestações que distribuem energia para o Estado. Seria o marco do fim da crise. Mas a ação era simbólica. Para resolver a crise energética, foram ligadas 180 MW/h de energia fixa, porém a demanda segura seria de 240 MW/h, segundo relatório do senador Randolfe Rodrigues (Rede). 

"Foi tudo feito de forma muito improvisada. Eles instalaram 180 MW/h apenas. Ainda não há um gerador secundário caso os que estão lá entrem em pane novamente. Outra questão que nunca nos responderam é se o sistema irá conseguir suprir um pico de demanda", alerta o senador Randolfe Rodrigues , que moveu uma ação civil pública contra o governo federal e também pediu o afastamento dos diretores da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) e do Operador Nacional o Sistema (ONS), órgãos responsáveis pela gestão da energia no Brasil.

Senador Randolfe Rodrigues (Rede) em entrevista a equipe do Repórter Brasil no Amapá

Apesar das promessas, o governo federal se recusou pagar duas parcelas de auxílios emergenciais (para compensar as perdas geradas pelo isolamento social da pandemia) à população do Amapá solicitado em ação judicial pelo partido Rede. A Advocacia-Geral da União entrou com recurso para negar o pedido ainda em novembro. Porém, no dia 11 de dezembro, a Justiça determinou que o governo e a Caixa Econômica Federal têm dez dias para efetuar o pagamento da primeira parcela. 

Após a visita do presidente ao Estado, foi publicada uma Medida Provisória, que definiu o plano de apoio a vítimas do apagão – que é basicamente isentar os amapaenses da conta de luz de novembro.

Outra medida anunciada oficialmente pela Aneel foi incluir cerca de dois mil moradores do Amapá no programa Luz Para Todos. Mas nenhum auxílio direto à população foi executado para compensar perdas e, especialmente, as mortes. Nenhum dos órgãos questionados respondeu sobre as vidas perdidas durante o apagão.

"O que mais o choca nessa situação toda são as mortes. Já vi muitas. Gente precisando de tratamento médico intensivo e o hospital sem luz. As estradas péssimas pra levar o povo até a capital. E o mais triste é que as mortes são sempre entre os mais carentes", lamenta Manoel Jorge da Conceição das Mercês, funcionário público e morador de Serra do Navio, cidade a 209 km da capital que, junto a Pedra Branca do Amapari, a 189 km de Macapá, , há anos sofre com constantes apagões energéticos.

Um problema antigo

As duas cidades foram fundadas após 1957 com a construção das Vilas de Operários da mineração de manganês da empresa Indústria e Comércio de Minérios (Icomi) – parte dos grandes projetos de mineração que estão no Amapá há mais de 60 anos. A riqueza mineral não evitou o abandono da população, que há mais de cinco anos sofre com a falta de energia. É comum as duas cidades ficarem sem luz por até cinco dias – inclusive com falta energia no hospital municipal.

"Aqui é assim, ficamos sempre, e por dias. A rede é antiga, tem 60 anos, e falta manutenção. Essa é sempre a desculpa", diz Mercês. "É um crime contra a humanidade, temos um município tão rico e vivemos abaixo da pobreza, não temos nem as necessidades básicas atendidas."

Em Pedra Branca do Amapari, uma ação civil pública exige o ressarcimento das perdas materiais da população dos últimos dois anos. O Ministério Público do Amapá entrou na Justiça contra a Companhia de Eletricidade do Amapá (CEA) por causa das constantes interrupções no fornecimento de energia elétrica na cidade. A CEA foi condenada a fornecer energia elétrica de forma eficiente, regular e contínua, sob pena de multa de R$ 2 mil reais por hora de interrupção e pagamento de indenização aos moradores lesados por essas interrupções no fornecimento de energia elétrica, conforme previsto no Código de Defesa do Consumidor.

"Mesmo com a decisão [favorável ao consumidor], o pedido segue ignorado. Agora estamos requerendo judicialmente que a companhia cumpra a sentença condenatória", diz a promotora de Justiça Thaysa Assum, autora da ação. "Mesmo com a ação, desde 2019, a CEA descumpriu a obrigação de fornecer energia elétrica de forma eficiente, contínua e regular. A situação é muito difícil, sempre falta luz. A companhia alega que houve problemas na empresa subcontratada para manutenção na linha", completa a promotora. 

Outra ação investiga o CEA por responsabilidade direta em quatro mortes. Um casal e seus dois filhos teriam morrido devido à falta de manutenção na rede de energia. Eles estavam em uma moto na estrada da comunidade de Sete Ilhas, em Pedra Branca do Amapari, quando passaram em cima de um fio de energia que estava jogado na pista. A descarga elétrica matou Gilson Cruz da Silva, de 33 anos, os filhos Gerson, de 5 anos, e Graziele, de 2 anos, na hora.

A mãe das crianças, Gleice Kelle Gomes da Silva, de 26 anos, morreu após três dias internada no Hospital de Emergência (HE) de Macapá. Ela sofreu queimaduras de 3º grau em 70% do corpo e não resistiu aos ferimentos.

A CEA alega que o cabo que encostou na moto em movimento, onde estavam as quatro pessoas, fazia parte de uma rede clandestina. Um inquérito policial investiga a responsabilidade dos óbitos.

No que tange ao problema de fornecimento de energia à Serra do Navio e Pedra Branca do Amapari, a companhia afirmou que "as linhas de transmissão perpassam, em grande parte, por regiões de mata fechada e de difícil acesso", o que "ocasiona problemas constantes de falta de energia". Disse ainda que "tem intensificado o trabalho de manutenção preventiva e corretiva na rede elétrica que atende esta região". 

Rodízio nos hospitais

O apagão também comprometeu o funcionamento dos hospitais. Foram tantos dias sem luz, que no hospital central de Macapá os médicos tiveram que tomar a decisão entre ligar as máquinas de hemodiálise e as Unidades de Terapia Intensiva (UTI). 

A falta de luz fez com que pacientes precisassem revesar a máquina de hemodiálise, necessária para manter vivo as vítimas de doenças renais graves. Rubens Neves de Albuquerque Júnior, de 59 anos, estava com covid-19 e sofria de doenças renais e diabetes. Ele teria sido um dos que se submeteu ao rodízio na hemodiálise. Morreu em 10 de novembro, no Hospital Universitário, na capital. 

Durante o apagão, a Secretaria de Saúde do Estado também chegou a parar de contabilizar as vítimas do novo coronavírus. A Secretaria de Comunicação do governo do Amapá não respondeu aos questionamentos da Repórter Brasil sobre o problema nos hospitais e sobre a morte de Albuquerque Júnior. 

A Companhia de Eletricidade do Amapá afirmou que "desde os primeiros dias de apagão realizou manobras para atender os circuitos onde estão localizados hospitais, maternidade, centros de tratamento à pacientes com Covid-19 e Unidades de Pronto Atendimento com energia 24 horas". E que, em todas as mortes mencionadas, "em nenhum dos casos foi comprovado que houve negligência por parte da companhia", que está prestando todos os esclarecimentos aos órgãos fiscalizadores.

Perda de estoques e de esperança

Regina Souza, pouco antes de mais uma queda de energia durante o trabalho em sua pequena venda há mais de quatro décadas em Mazagão Velho (a 40 km da capital)

Os amapaenses também relatam que os preços subiram excessivamente por causa da falta de luz. Um garrafão de água chegou a custar R$ 30. As velas tiveram uma inflação de quase 100%. Os comerciantes não tiveram outra alternativa a não ser passar os custos para os clientes.

A vela foi o principal produto dos pequenos comércios no Amapá. A família de Regina Souza administra uma pequena venda há mais de quatro décadas em Mazagão Velho (a 40 km da capital). Com menos de dez mil habitantes, a cidade é a mais antiga do Estado, com 250 anos, e foi fundada por portugueses para abrigar famílias vindas da região do Mazagão, no Marrocos, no continente africano.

A falta de energia fez Souza perder grande parte do seu estoque. No dia do primeiro apagão, em 3 de novembro, a família ficou quase 24 horas sem saber o que acontecia. Apenas quando conseguiram acesso à internet souberam que se tratava de uma crise no Estado todo. A incerteza durou cinco dias. 

Muitos foram para as ruas protestar. No bairro Remédios, no município de Santana, a população fechou ruas e ateou fogo em pneus em revolta. Demorou 15 dias até os governantes começarem a dar alguma satisfação à população.

"Ficamos quase um mês sem poder vender carne. Quem tinha alguma distribuiu logo e os açougues pararam de fornecer. Depois, passamos mais de vinte dias na correria entre ligar e desligar todos eletrodomésticos. Minha vizinha perdeu o freezer. Aqui criamos um rodízio entre o pessoal de casa pra ficar de olho nas tomadas", conta Souza que não sabe ao certo o quanto perdeu em mercadorias e vendas.

Além das perdas materiais e humanas, o apagão trouxe aos moradores o medo. Com as ruas no escuro, a insegurança voltou a ser uma questão. Na Comunidade Quilombola Lagoa dos Índios, foram dias de pânico. Isso porque a comunidade foi atacada por um grupo armado, em 2019, que tentou remover os moradores da região. 

"Nosso receio maior era que essas pessoas pudessem se aproveitar do apagão para voltar. As crianças pareciam sentir nosso temor. Elas acordavam desesperadas, gritando com medo da escuridão, e não podíamos fazer nada. Essa dor moral ninguém vai nos ressarcir", conclui Danielson, ainda em luto pela morte de Danielle Silva.

 

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