Mesmo servindo como pano de fundo de um embate político, os resultados positivos em relação à vacina chinesa CoronaVac falaram mais alto. Após comprovação de 78% de eficácia contra a covid-19, o Ministério da Saúde firmou exclusividade na distribuição do imunizante produzido pelo Instituto Butantan. Com isso, a população brasileira terá acesso às doses pelo Sistema Único de Saúde (SUS), de forma gratuita e respeitando as prioridades estabelecidas pelo plano do governo federal.
Contando apenas com duas vacinas de transferência tecnológica já garantida no Brasil — do Instituto Butantan e da Fiocruz— e as doses recebidas por meio do mecanismo multilateral Covax Facility, na teoria, toda a população brasileira estaria imunizada até o fim de 2021. Apesar de matematicamente possível, diversos fatores se somam para que esta medida, reconhecida pela ciência como principal estratégia coletiva de saúde para dar fim à pandemia, esteja longe de se concretizar.
Entre os obstáculos estão as lacunas no fechamento de contratos, temor de faltar agulhas e seringas, incertezas em relação aos esquemas vacinais e as falas contraditórias do presidente Jair Bolsonaro, que insiste em questionar a importância da imunização, acabando, assim, por desestimular a adesão.
Até então, as apostas do governo federal estavam concentradas na importação e produção nacional da vacina da AstraZeneca com a Universidade de Oxford, responsabilidade que ficou nas mãos da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). Após resolução diplomática entre o Brasil e a Índia, a Fiocruz espera a entrega de dois milhões de doses prontas, vindas do instituto indiano Serum. “A estratégia é contribuir com o início da vacinação ainda em janeiro com as doses importadas e, ao mesmo tempo, dar início à produção, de acordo com o cronograma já amplamente divulgado”, esclareceu a Fiocruz. O pedido emergencial para a aplicação das doses foi feito junto à Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), que aprovou a triagem inicial dos documentos e tem até dia 18 para fazer a análise completa.
Para iniciar o envasamento e rotulação próprios, a fundação aguarda a chegada do composto ativo da vacina e estima entregar o primeiro milhão de doses entre os dias 8 e 12 de fevereiro. Por meio do Instituto de Tecnologia em Imunobiológicos (Bio-Manguinhos), a fundação planeja produzir 100,4 milhões de doses ainda no primeiro semestre para serem incorporadas ao Programa Nacional de Imunização (PNI). Outras 110 milhões são estimadas para o segundo semestre de 2021. Apesar das promessas, não há nenhuma vacina pronta no país.
Enquanto isso, o Instituto Butantan, que adquiriu a tecnologia para desenvolver a CoronaVac, vacina chinesa da farmacêutica chinesa Sinovac, já tem 10,8 milhões de doses prontas e também entrou com pedido de uso emergencial, relativo às seis milhões unidades vindas da China e que fazem parte do montante que está em território nacional. Diferentemente da Fiocruz, o Butantan foi barrado na triagem inicial para a liberação e terá que apresentar mais dados. O instituto promete ser breve no envio e a agência, continuar as análises com os dados já prestados, “de modo a agilizar o máximo possível o processo de avaliação e autorização de vacinas contra a covid-19”.
Na quinta-feira, após a publicação da medida provisória que possibilita a aquisição de vacinas antes do registro sanitário ou da autorização para uso emergencial, o Ministério da Saúde finalmente assinou contrato com o instituto para a compra de 46 milhões de doses da vacina até abril, com previsão de mais 54 milhões ao longo do ano, chegando a 100 milhões de doses. Antes que isso fosse realizado, entretanto, questões políticas obstruíram o acordo para utilização da vacina no âmbito do governo federal.
Em outubro, o ministro Eduardo Pazuello chegou a assinar um memorando de intenção de compra, mas foi desautorizado por Bolsonaro, que afirmou que a “vacina chinesa de João Doria (governador de São Paulo)” não seria comprada. Só agora o governo, de fato, voltou atrás, quando a eficácia da vacina foi anunciada, mas fazendo questão de afastar o protagonismo de Doria, responsável pela campanha pró-CoronaVac. “Deixando bem claro: quem comprou a vacina foi o Instituto Butantan, não foi o estado de São Paulo”, disse o secretário-executivo da pasta da Saúde, coronel Élcio Franco.
A oferta inicial do Butantan era entregar as 100 milhões de doses ainda no primeiro semestre, mas a anunciada falta de recursos arrastou a compra até o fim do ano. “Não temos orçamento neste momento para fazer a contratação integral das 100 milhões de doses. Então, estamos comprando um primeiro lote com a opção de nos manifestarmos e fazer um novo contrato”, afirmou Franco.
A “capacidade de envase diário planejado para a vacina do Butantan contra a covid-19 é entre 600 mil e um milhão de doses”, garante o próprio instituto, que também informa ter a opção de ampliar a oferta ainda para 2021, caso haja solicitação do ministério. Outra alternativa futura para fornecimento deve vir da fábrica nacional com capacidade de produzir, do zero, 100 milhões de doses da CoronaVac por ano. Ainda em construção, a fábrica deve estar pronta no segundo semestre deste ano e, em um pós-pandemia, poderá servir como local para produção de outros imunizantes do instituto.
No entanto, a possibilidade de adquirir mais doses da CoronaVac ainda em 2021 não chegou a ser mencionada publicamente pela pasta. Em condições normais, as produções extras poderiam ser exportadas, negociadas diretamente com os estados ou com a rede privada. Mas, agora, a distribuição será exclusiva ao SUS, mesmo diante das dificuldades orçamentárias.“Todas as vacinas do Butantan serão, a partir deste momento, incorporadas ao PNI, distribuídas de forma equitativa e proporcional a todos os estados, da mesma forma que as vacinas da AstraZeneca”.
Morosidade
A demora do governo federal em agir em relação às vacinas é alvo de críticas de especialistas. Médico sanitarista da Fiocruz e ex-presidente da Anvisa, Cláudio Maierovitch afirma que o Brasil demorou a “entrar na fila” pela vacina. “(O governo) achou que não precisava pegar fila, que talvez poderia furar a fila em algum momento, ou que isso não era importante”, opina. Em dezembro, o presidente Bolsonaro chegou a dizer que como o país tem um “mercado consumidor enorme”, os laboratórios é que deveriam estar interessados em vender ao Brasil e procurar a Anvisa. “Pessoal diz que eu tenho que ir atrás. Quem quer vender (é que tem)”, disse o mandatário a apoiadores.
Para o sanitarista, ao longo de toda a pandemia, o governo negou a importância da situação, ou se contrapôs a ações de quem deveria enfrentá-la. “Enquanto vários países procuraram acompanhar tudo que estava sendo feito para o desenvolvimento das vacinas, o governo brasileiro ficou parado. Só recentemente teve alguma pequena movimentação para além daqueles movimentos do Butantan e da Bio-Manguinhos”.
Diretor científico da Sociedade de Infectologia do Distrito Federal, José Davi Urbaez avalia que a demora que se vê nas movimentações relativas à vacina é coerente com a política negacionista que o governo manteve ao longo da pandemia. De acordo com ele, a área da Saúde que cuida disso, o PNI, “foi anulada pelo governo”. “Está completamente apagada. Você teria essa área praticamente todos os dias tendo ações, com matérias na imprensa, porque a comunicação dentro de um programa em uma epidemia é um dos grandes pilares”.
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Semana com maior número de casos
A primeira semana epidemiológica de 2021 terminou com um alerta: a pandemia não foi embora com o ano que passou. Após romper a barreira das 200 mil vidas perdidas pela covid-19, o Brasil registrou, no acumulado dos últimos sete dias, uma alta de 40% nas mortes e 43,5%, nos casos, em relação à semana anterior. O total de infecções, inclusive, foi o maior registrado desde o início da pandemia: 359.593. O recorde anterior ocorreu durante a semana 51, em dezembro de 2020, com 333.028 casos.
Somente ontem, foram acrescentados ao balanço mais 1.171 óbitos e 62.290 novos positivos para a doença, contabilizando desde o início da pandemia, 202.631 perdas e 8.075.998 confirmações. A alta era esperada pelos estudiosos da área, em razão das aglomerações de fim de ano.
Com as medidas de isolamento enfraquecidas, a expectativa é de que os aumentos continuem refletindo nas próximas semanas. O país deve ultrapassar as 8,5 milhões de infecções e as 210 mil mortes no encerramento da próxima semana, segundo o Portal Covid-19 Brasil, iniciativa formada por pesquisadores da Universidade de Brasília (UnB) e da Universidade de São Paulo (USP).
Com os novos acréscimos, a média móvel de casos e mortes, que oscilava na última semana, disparou. De acordo com análise do Conselho Nacional dos Secretários de Saúde (Conass), o Brasil confirma, em média, 51.370 infecções e 987 mortes por dia.
Dentro do Brasil, apenas três estados não ultrapassaram a barreira das mil mortes pela covid-19 — Amapá (969), Acre (823) e Roraima (793). Enquanto isso, do outro lado da tabela, com mais de 10 mil óbitos estão os estados de São Paulo (48.298), Rio de Janeiro (26.704), Minas Gerais (12.594) e Ceará (10.137). (BL)
Seringas e agulhas
A procura por seringas e agulhas para agregar ao Programa Nacional de Imunização (PNI) é alvo de polêmicas, já que a primeira tentativa de compra do governo federal foi mal sucedida. O pregão eletrônico conseguiu oferta de menos de 3% da quantidade prevista, de 331 milhões. Os fabricantes informaram que não houve interessados porque o preço pago pelo governo está muito abaixo do mercado; a quantidade de unidades também seria acima da disponibilidade. Existem no Brasil três fabricantes dos insumos. Um novo pregão seria anunciado nas próximas duas semanas, mas Bolsonaro disse essa semana que a Saúde suspendeu a compra “até que os preços voltem à normalidade”. Na quinta-feira, entretanto, o ministro Eduardo Pazuello afirmou que a pasta está adquirindo os insumos para que integrem o estoque regulador, negou que a licitação tenha fracassado e ressaltou que a compra está em andamento. No mesmo dia, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Ricardo Lewandowski determinou que Pazuello comprove, em até cinco dias, que a União e os estados têm estoque suficiente de seringas e agulhas para iniciar a campanha de vacinação contra a covid-19.