BRASIL

Covid-19: saiba como é a operação montada na Amazônia para salvar vidas

Vacinação das comunidades indígenas na Amazônia é repleta de complexidades. Desde as naturais, como a distância e a desconfiança das populações, às adquiridas, como as fake news sobre a imunização, que assustam e afastam os povos. Mas, no fim, vence a ciência

Bruna Lima
postado em 06/03/2021 06:00 / atualizado em 06/03/2021 09:45
 (crédito: Crédito: Bruna Lima/CB/D.A Press. )
(crédito: Crédito: Bruna Lima/CB/D.A Press. )

São Gabriel da Cachoeira (AM) — A complexidade para fazer a vacina contra a covid-19 chegar às comunidades indígenas é tão grande que, quase dois meses após serem disponibilizadas as doses suficientes para imunizar toda a população aldeada do Brasil, 35% das pessoas desse público-alvo ainda não receberam nem sequer a primeira. Diante do desafio em acessar as áreas mais remotas, somado ao esforço para desconstruir o impacto causado pelas fake news –– que geraram um movimento antivacina ––, mais de 14 mil profissionais de saúde e 34 mil militares se unem para garantir a prevenção antes que o novo coronavírus ganhe força –– e se corra o risco de etnias serem riscadas do mapa por não terem defesas contra o agente infeccioso.

Em meio à mata fechada da floresta amazônica, no povoado de Iauaretê — município de São Gabriel da Cachoeira (AM), fronteira com a Colômbia e a Venezuela, a 852 km de Manaus —, o Correio acompanhou um dia de imunização a convite do Ministério da Defesa, que auxilia no transporte e na logística dos materiais e das equipes. Na ocasião, 239 doses da vacina contra covid-19 chegaram a indígenas da etnia Hupdah.

Um dos contemplados foi Jovino Pinoa, 53 anos, que, com confiança e entusiasmo, arregaçou a manga da camisa e ofereceu o braço à aplicação. “Essa vacina é muito importante para nós, para manter viva nossa comunidade e nossa cultura. Eu e meus parentes ficamos muito contentes, porque toda essa gente, com toda dificuldade, vem aqui nos apoiar”, comemorou. Para chegar à aldeia, chamada Santo Atanásio, foi necessário substituir o acesso fluvial por um helicóptero, algo que permitiu que os imunizantes chegassem em condições adequadas de armazenamento.

Ao ouvir o barulho do motor da aeronave, que, de longe, anunciava a chegada do imunizante, Jovino — que é o agente indígena de saúde da aldeia e, por isso, incumbido de realizar a comunicação entre a comunidade e os profissionais da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), do Ministério da Saúde — tratou logo de organizar o espaço. “Aqui chegou o coronavírus e a gente não quer que a doença se espalhe. A maioria foi correndo receber as equipes que cuidam de nós. No começo, teve mais gente que até achou que quem tomasse a vacina ia morrer uma hora depois. Mas não é verdade isso e, agora, os parentes já entenderam”, explicou, confirmando que até mesmo as regiões mais remotas do país são vítimas de informações mentirosas sobre os fármacos, a doença e os seus efeitos.

Como a vacinação não é obrigatória, os integrantes da Sesai realizam, rotineiramente, ações de mobilização e educação, a fim de incentivar a estratégia preventiva. Na avaliação do enfermeiro Wagner Lopes, 36, a desconstrução das notícias falsas só é possível pela presença constante dos profissionais nas áreas, mesmo antes de qualquer indício de pandemia.

“Precisamos conquistar a confiança das pessoas, sabendo respeitar crenças e tradições. Às vezes, o indígena não toma a vacina na primeira oportunidade, mas nós voltamos sempre, fazemos o trabalho de formiguinha e criamos muito mais que relação entre profissional de saúde e paciente. Criamos conexão, fazemos uma troca, e não há nada que pague um muito obrigado sincero dessas pessoas, ainda que na língua deles, ainda que pelo olhar”, afirmou Wagner, que, há quatro, anos está na linha de frente do contato com os índios.

No mesmo dia, a equipe de 13 pessoas chefiada por Wagner atendeu, ainda, a aldeia Taracuá Igarapé. As comunidades fazem parte do Distrito Sanitárias Especial Indígena (DSEI) Alto Rio Negro, que contempla uma população de aproximadamente 29 mil indígenas de 54 diferentes etnias, espalhados por uma área de 138 mil quilômetros quadrados. No distrito, atuam 481 profissionais de saúde, em 14 unidades básicas de saúde indígena, 25 polos base e uma casa de saúde indígena. Das doses levadas, 50 foram usadas, sendo 21 referentes à primeira aplicação.

As vacinas não utilizadas voltam para a sede do DSEI, até que outra equipe retorne ao local para realizar uma nova leva de aplicações, como explicou o assessor especial da Sesai Carlos Colares. “Não há perda, porque todas as questões de conservação são observadas. Por isso, a importância do transporte correto. Como estratégia, começamos a campanha imunizando as comunidades mais próximas das cidades e, atualmente, os esforços estão concentrados nas regiões mais isoladas”, explicou.

Doença é a ameaça

Para contemplar as áreas de difícil acesso, as Forças Armadas entram com a logística e transporte dos medicamentos. No Alto Rio Negro, das 677 aldeias, 86 fazem parte desse rol. “Temos cerca de 150 militares da brigada envolvidos diretamente na vacinação das aldeias de Taracuá Igarapé e Santo Atanásio. Nossa missão consiste em combater o inimigo e proteger a nação. Desta vez, a covid-19 é a ameaça, e vamos vencê-la”, observou o chefe do Estado-Maior da 2ª Brigada de Infantaria de Selva, coronel Sylvio Doktorczyk. Em todo o país, o Ministério da Defesa auxilia 221 comunidades, em 10 comandos conjuntos criados para a execução da Operação Covid-19.

Por enquanto, no DSEI Alto Rio Negro, 7,2 mil dos 11,5 mil indígenas acima de 18 anos e que não têm contraindicação para receber a imunização foram efetivamente incluídos na estratégia de vacinação, 62% do público-alvo. Desses, aproximadamente 900 receberam a segunda dose.

Além do processo de desconstrução das fake news, o ritmo lento é também porque pessoas que não se encontravam na comunidade quando as equipes da Sesai chegaram, apresentavam sintomas da covid, estavam adoecidas ou tinham recebido a vacina contra a gripe recentemente precisaram esperar para tomar o imunizamte contra o novo coronavírus.

“Lidar com essas diferenças faz parte da nossa rotina, assim como as dificuldades de acesso que chegam a exigir quatro, cinco dias de barco, além de longas caminhadas. Cada equipe passa 30 dias rodando nas comunidades, volta, descansa e depois começa tudo de novo”, disse o presidente do conselho do DSEI Alto Rio Negro, Jovanio Wiráuaçú, 41.

*A repórter viajou a convite do Ministério da Defesa

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Respeito às tradições

Membro da etnia Baré, o presidente do conselho do DSEI Alto Rio Negro, Jovanio Wiráuaçú, 41 anos, ressalta que para garantir o bom andamento das ações de saúde, indígenas e não indígenas precisam se assegurar que tradições e crenças não sejam desconsideradas. Isso porque as comunidades tendem naturalmente a desconfiar de ações externas que possam entrar em choque com o imaginário e os hábitos que fazem parte da cultura local.

“Acompanhamos as ações para dar orientação dos aspectos culturais, que é o maior desafio. Essas comunidades praticam conhecimentos tradicionais, tratam doenças com plantas, bênçãos. Isso precisa ser preservado, mas aliado ao que avançamos na medicina porque, ainda que distantes, as comunidades vão às cidades recolher seus benefícios, cumprir compromissos como cidadãos e acabam ficando suscetíveis. Então, a união é que vai permitir que nossos parentes vivam e que essas comunidades não desapareçam”, explicou Jovanio.

Em todo o Brasil, 410 mil indígenas estão aptos a receber a imunização contra a covid-19. Por enquanto, aproximadamente 265 mil receberam pelo menos uma dose. A Sesai enfatiza, no entanto, que as atualizações da vacinação indígena demoram mais para serem incluídas ao sistema do que os dados dos postos de saúde, já que é necessário que as equipes retornem das aldeias com os novos números. Até o momento, 124 mil indígenas dos 34 DSEIs receberam a dose de reforço e completaram o cronograma vacinal contra a covid-19.

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