VIOLÊNCIA

Fachin cobra de Aras apuração sobre matança no Jacarezinho, no Rio

Ministro vê indícios de execução na operação policial no Jacarezinho, que deixou 28 mortos e é a mais violenta realizada no Rio. Defensora pública que esteve na favela após incursão encontrou locais repletos de sangue e endossa suspeita de assassinatos

Correio Braziliense
postado em 08/05/2021 06:00
 (crédito: Editoria de ilustração)
(crédito: Editoria de ilustração)

O ministro Edson Fachin, do Supremo Tribunal Federal (STF), pediu ao procurador-geral da República, Augusto Aras, que investigue a operação policial contra traficantes de drogas na favela do Jacarezinho, no Rio de Janeiro, que deixou 28 pessoas mortas, entre elas um policial — mais três óbitos foram computados ontem. Ele viu indícios de “execução arbitrária” no episódio. O plenário da Corte determinou, em agosto de 2020, a suspensão das incursões das forças de segurança em comunidades do Rio durante a pandemia.

“Os fatos relatados parecem graves e, em um dos vídeos, há indícios de atos que, em tese, poderiam configurar execução arbitrária. Certo de que Vossa Excelência, como representante máximo de uma das mais prestigiadas instituições de nossa Constituição cidadã, adotará as providências devidas, solicito que mantenha este relator informado das medidas tomadas e, eventualmente, da responsabilização dos envolvidos nos fatos”, salientou o ministro, em ofício assinado na última quinta-feira. Documento semelhante foi enviado ao procurador-geral de Justiça do Estado do Rio, Luciano Oliveira Mattos de Souza.

Já o PSB pediu ao STF que solicite ao Ministério Público Federal a apuração do suposto crime de desobediência da decisão da Corte que suspendeu as incursões policiais nas comunidades fluminenses na pandemia. A Operação Exceptis tinha como intuito prender traficantes de uma facção que controla o Jacarezinho, mas não prendeu ninguém.

Nos pedidos de Fachin, ele faz referência a dois vídeos enviados pelo Núcleo de Assessoria Jurídica Universitária Popular da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), recebidos pelo seu gabinete. Em um deles, aparecem cinco corpos baleados. Em outro, agentes policiais abrem à força a porta de uma residência: “Abre essa porra! Polícia! Mão na cabeça! Tá fodido, vagabundo!” E atiram em um homem que estava deitado no chão. As imagens, porém, não foram confirmadas como sendo a ação no Jacarezinho. De acordo com o Instituto Fogo Cruzado, que conta com vasta base de dados sobre tiroteios no Rio, a operação no Jacarezinho foi a que teve o maior número de mortes desde 2016, quando começou a série histórica.

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Violência extrema

A defensora pública Maria Júlia Miranda, do Núcleo de Direitos Humanos da Defensoria do Rio, esteve no Jacarezinho pouco depois da operação e deparou-se com becos e casas repletos de sangue. “Ouvimos muitos relatos de violação de domicílios e mortes. Muitos muros e portas cravejados de balas”, disse.

A equipe da Defensoria entrou em duas residências que serviram, durante a operação, de palco para mortes. “Na primeira, a família foi tirada de casa; morreram dois rapazes na sala, que estava repleta de sangue. Havia até partes de corpo — que pareciam ser massa encefálica, mas é difícil dizer exatamente”, observou.

A segunda casa visitada é o lar de um casal que tem uma filha de oito anos, onde um homem morreu dentro do quarto dela, que viu toda a cena. “Tinha uma poça de sangue no quarto. A cama lotada de sangue, inclusive a coberta que a menina usa. Essa menina está completamente traumatizada”, afirmou Maria Júlia.

O cenário das casas e o fato de as pessoas terem sido arrastadas já mortas de dentro delas fazem com que a Defensoria veja indícios de execução e de “desfazimento da cena do crime”. Somente ontem os corpos dos mortos chegaram ao Instituto Médico Legal (IML). Preocupado com a independência das investigações, o Ministério Público do Rio (MP-RJ) enviou um perito para acompanhar os trabalhos do IML, que é ligado à Polícia Civil — mesma corporação que realizou a operação. (Colaboraram Sarah Teófilo e Gabriela Bernardes, estagiária sob a supervisão de Fabio Grecchi)

As instituições envolvidas na chacina

Polícia Civil do Rio de Janeiro
Perdeu um agente na operação da quinta-feira, mas deixou um rastro de 27 mortos. O delegado Ronaldo Oliveira, subsecretário de Planejamento e Integração Operacional da Polícia Civil, negou que bandidos tenham sido mortos já rendidos — e classificou a crítica do Ministério Público do Rio de Janeiro de “ativismo judicial”.

Supremo Tribunal Federal —
O plenário da Corte decidiu, em agosto do ano passado, que estavam proibidas as ações policiais nas favelas do Grande Rio enquanto durasse a pandemia. Referendou uma liminar concedida em junho pelo ministro Edson Fachin. Porém, de acordo com o levantamento do Instituto Fogo Cruzado, os números de ações e mortes nas quais agentes do estado estão envolvidos continuam altos.

Instituto Fogo Cruzado (IFC) e Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos (Geni) da Universidade Federal Fluminense (UFF) —
Dedicam-se a estudar e coletar dados sobre os conflitos armados no Rio de Janeiro. Foi o IFC que constatou que a operação policial da última quinta-feira foi a mais letal realizada no estado.

Governo do Estado do Rio
Tem um histórico de acobertamento da violência policial nas favelas de todo o estado, sobretudo no Grande Rio — região que engloba a capital e os municípios de Niterói, São Gonçalo e da Baixa Fluminense. Em relação à operação da última quinta-feira, há duas coincidências: 1ª) aconteceu depois que Jair Bolsonaro encontrou-se com o governador Cláudio Castro, um dia antes; e os filhos do presidente indicaram vários integrantes da atual cúpula da segurança do estado.

 

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Mourão: era tudo "bandido"

O vice-presidente da República Hamilton Mourão classificou como “bandidos” os mortos na favela do Jacarezinho, na operação policial mais letal da história do Rio de Janeiro, realizada na quinta-feira e que deixou 28 mortos. “Tudo bandido! Entra um policial numa operação normal e leva um tiro na cabeça, de cima de uma laje. Lamentavelmente, essas quadrilhas do narcotráfico são verdadeiras narcoguerrilhas; têm controle sobre determinadas áreas e é um problema da cidade do Rio de Janeiro”, disse, ao chegar para despachar no Palácio do Planalto.

Um dia depois da operação policial, um grupo com cerca de 50 pessoas realizou, ontem, uma manifestação em frente à Cidade da Polícia, que reúne delegacias especializadas da Polícia Civil. A incursão de quinta-feira foi realizada por 250 agentes da corporação.

A Operação Exceptis ocorreu sob o comando da Delegacia da Criança e do Adolescente Vítima (DCAV), em conjunto com outras delegacias da Polícia Civil, com o objetivo de prender 21 acusados de aliciar crianças e adolescentes para o tráfico de drogas na comunidade. Depois da ação, o Ministério Público informou que adotou medidas para verificar os fatos “de modo a permitir a abertura de investigação independente para apuração dos fatos, com a adoção das medidas de responsabilização aplicáveis”. Por decisão do Supremo Tribunal Federal, operações policiais no Rio estão restritas durante a pandemia.

O caso teve repercussão internacional. O escritório de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU) pediu uma investigação independente. A operação é mais uma da longa história de “desproporcional e desnecessário” uso da força pela polícia, disse o porta-voz da ONU para Direitos Humanos, Rupert Colville, em uma entrevista da organização em Genebra. No ano passado, o Comitê da ONU sobre Desaparecimentos Forçados já havia cobrado explicações do governo Bolsonaro sobre a violência policial e sobre o desmonte dos mecanismos de monitoramento e prevenção da tortura.

A Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj) afirmou que há “graves indícios de execução” e pediu uma investigação do MP-RJ. A deputada federal Benedita da Silva (PT-RJ) e a bancada do PSol na Câmara dos Deputados apresentaram ao presidente da Casa, Arthur Lira (Progressistas-AL), requerimento de formação de uma comissão para acompanhar o caso.

A chacina ganhou destaque na imprensa internacional. O jornal americano The Washington Post disse que, mesmo em uma cidade em que são frequentes operações violentas para controlar organizações criminosas, “o número de mortos foi chocante, mostrando o controle duradouro da violência no maior país da América Latina”. Os britânicos The Sunday Times, The Independent e The Guardian classificaram a ação como uma “chacina”. O francês Le Monde falou em “banho de sangue”.

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