Saúde mental

Luta antimanicomial: conheça a busca por humanização no tratamento psiquiátrico

Esta terça-feira marca o dia em que profissionais de saúde mental e organizações da sociedade civil buscam combater o estigma e a exclusão social de pessoas com transtornos mentais

Thays Martins
Jéssica Gotlib
postado em 18/05/2021 20:57 / atualizado em 18/05/2021 21:12
 (crédito: Dênio Simões / GDF – Arquivo)
(crédito: Dênio Simões / GDF – Arquivo)

Um holocausto brasileiro. Foi assim que ficou conhecido o horror enfrentado pelos pacientes do Hospital Colônia, em Barbacena (MG), o manicômio que levou o município mineiro a ser de chamado de “cidade dos loucos". Lá morreram 60 mil pacientes, 70% sequer tinham sido diagnosticados com doenças mentais. A legislação sobre hospícios só mudaria no Brasil em 2001. Mas, 20 anos após o fim oficial dos manicômios no país, a luta por um tratamento digno para quem tem transtorno mental ainda está longe do fim.

De acordo com o pesquisador Paulo Amarante, da Escola Nacional de Saúde Pública da Fiocruz, a grande questão é que é preciso uma mudança de mentalidade na população. “É um processo de mudança cultural, uma mudança muito profunda. São questões que tocam a estrutura social, assim como racismo. É diferente do que seria o padrão idealmente aceito”, explica. Entre os preconceitos, o professor cita a questão de achar que alguém com um transtorno mental é perigoso, "a ideia de que perdeu a cabeça, perdeu o juízo, de que o distúrbio implica em periculosidade". "Isso é raríssimo”, destaca.

De acordo com Marina Thuane, do Movimento Pró Saúde Mental, a lei não foi suficiente para resolver a questão dos maus-tratos a pessoas com transtornos mentais. “A Reforma Psiquiátrica tinha em sua gênese a certeza de que todos os hospitais psiquiátricos precisavam ser extintos ,  em substituição a eles, deveria se construir uma nova forma de cuidado, em liberdade, comunitária, no território e promovendo autonomia. Especialmente, após 2015/2016, existe o que chamamos de movimento de contrarreforma psiquiátrica, que é o recrudescimento da lógica manicomial, expressa em: desinvestimento de serviços substitutivos em paralelo a investimentos em leitos psiquiátricos e Comunidades Terapêuticas, fortalecimento da narrativa manicomial, proibicionista e contrária à redução de danos, bem como uma frequente ameaça aos direitos da infância e adolescência”, destaca.

Para o psicólogo Felipe Rosa, a luta antimanicomial não se chama "luta" por acaso. “Ela é expressão de conflitos em torno da política de saúde mental que se desenvolve no país. A luta antimanicomial busca concretizar direitos para as pessoas com transtornos mentais, inclusive o direito à saúde, à dignidade, à participação política, ao trabalho etc”, afirma.

Mudanças na legislação sobre saúde mental ao longo dos anos
Mudanças na legislação sobre saúde mental ao longo dos anos (foto: Jéssica Gotlib/CB. DA. Press)

O terror dos manicômios

Paulo Amarante foi um dos que iniciaram a luta pelo fim dos manicômios há mais de 40 anos. O professor lembra que, naquela época, essas instituições tratavam a pessoa com transtorno mental de forma desumana. “Elas eram torturadas. Quantas morreram de desnutrição, de doenças infecto contagiosas... Mortes absurdas. Eu conheci hospitais que eram mais do que campo de concentração, eram campos de extermínio”, afirma o pesquisador. Obras como o Bicho de Sete Cabeças, filme estrelado por Rodrigo Santoro, que também completa 20 anos em 2021, mostram bem como funcionam essas instituições.

Hospital Colônia, Barbacena
Hospital Colônia, Barbacena (foto: Revista O Cruzeiro/ reprodução )


De acordo com Paulo, naquela época o Brasil contava com cerca de 80 mil leitos psiquiátricos. Hoje, são em torno de 25 mil. “A gente chama de leito porque é o nome oficial, mas não tinha nem o número de leito para o número de interno. Era o que chamávamos de leito chão”, explica. O psiquiatra ressalta que a luta pelo fim dessas instituições foi longa. Só para aprovação da lei, passaram-se 13 anos de tramitação no Congresso. Muitas eram particulares, com contratos com o governo, ou seja, recebiam dinheiro público. “Essas pessoas ganhavam muito dinheiro. Eram chiqueiros psiquiátricos e recebiam R$ 1.000 por paciente. Uma instituição com 2 mil leitos. Olha o orçamento que eles tinham. Era a indústria da loucura”, afirma o pesquisador.

Nise da Silveira - Luta Antimanicomial de Jéssica Gotlib

O tratamento

Com o fim dos manicômios, o Brasil instituiu os Centro de Atenção Psicossocial (Caps). Psicólogo social do Caps, Felipe Rosa explica que este é apenas um dos serviços oferecidos à população com transtornos mentais. “Entendemos que a saúde mental faz parte do cuidado integral da pessoa, então tem que estar presente em todos os pontos do SUS. O Caps, então, atua cuidando diretamente de algumas pessoas e cooperando no cuidado que outros serviços oferecem”, destaca.

Caps de Samambaia
Caps de Samambaia (foto: Dênio Simões / GDF – Arquivo)


Dessa forma, o serviço atua como um ponto de atenção especializada para pessoas com transtornos mentais graves e persistentes, que são cuidadas de acordo com um projeto terapêutico. Isso inclui atividades culturais e esportivas. “O cotidiano do Caps é repleto de atividades terapêuticas, além de contar com atendimentos de uma equipe profissional multidisciplinar”, explica.

Durante a pandemia, o psicólogo explica que várias atividades do Caps tiveram que ser suspensas para evitar aglomerações, mas foram criadas alternativas virtuais. “Além disso, se parte de retomar a vida envolve variar as atividades que ocupam nosso tempo e construir uma rede de relações que nos deem suporte, essas alternativas se tornaram mais distantes, deixando cada um de nós com menos recursos para lidar com tudo o que nos acontece”, lamenta.

Ele destaca que a pandemia também provocou mais adoecimento mental nas pessoas, devido ao desemprego, ao número crescente de mortes no país e ao clima de incerteza. “Todas as condições de vida que se tornaram mais precárias na pandemia trazem repercussões para nossa saúde mental”, explica.

Desafio atual

De acordo com o pesquisador Paulo Amarante, mesmo 20 anos após a aprovação da lei, as ameaças são constantes, como a tentativa de volta dos hospitais psiquiátricos particulares. “Estamos vivendo um momento de ameaça a todo o nosso Estado de direitos. Temos um sistema de saúde que é modelo, reconhecido internacionalmente. Todo o desmonte que o SUS está tendo não é de agora ”, destaca.

Entre as ameaças, ele cita a tentativa de encerrar os Caps e projetos sociais, além das chamadas comunidades terapêuticas. “Elas não são consideradas instituições de saúde, assim, elas fogem do controle. Em geral, elas são religiosas e ganham muito dinheiro porque vivem de emendas parlamentares. Muitas ainda recebem doações informais dos familiares sob ameaça de devolver o interno. Em muitas comunidades temos tido denúncias de violação de direitos humanos”, denuncia.

Felipe Rosa também destaca que, apesar de a luta ter avançado muito nesses últimos 20 anos, os obstáculos ainda são grandes. “Hoje, luta-se contra a mesma desumanização e pela efetivação de uma rede de cuidado, tendo como obstáculos diretos os manicômios que ainda existem sob diversas formas, especialmente algumas clínicas e todas as comunidades terapêuticas, contra a patologização da vida e contra a retirada de direitos”, diz.

A grande questão, de acordo com Felipe, é que faltam investimentos públicos em saúde mental. “Não foram implementados tantos serviços substitutivos quanto seriam devidos ou quanto foram previstos na legislação. Como consequência, os poucos serviços que existem estão dimensionados para um território com uma população muito maior do que comportam”, afirma. Existem serviços, segundo ele, que nunca nem saíram do papel, como residências terapêuticas e centros de convivência.

Além da necessidade de aumentar os investimentos no SUS, Marina destaca a urgência de entender que a internação é o último recurso a ser usado. Na maior parte dos casos, não é necessário este tipo de tratamento. “Penso que precisamos ainda resistir à lógica da internação em Hospital Psiquiátrico e em Comunidades Terapêuticas. Na perspectiva da luta antimanicomial, há possibilidade de internação, mas ela deve ocorrer em hospitais gerais e em Caps III. Para isso, precisamos de mais dispositivos como esses, precisamos de mais profissionais capacitados, de reinvestimento em serviços substitutivos”, explica.

Para o professor Paulo Amarante, também há a necessidade de um maior investimento na formação de profissionais qualificados. 

Marcos temporais:

  • 1946: A psiquiatra Nise da Silveira cria a Seção de Terapêutica Ocupacional no Centro Psiquiátrico Nacional, no Rio de Janeiro
  • 1957: Obras pintadas pelos internos do hospital psiquiátrico são expostas no II Congresso Internacional de Psiquiatria, em Zurique, Suíça. O trabalho é elogiado pelo psiquiatra Carl Gustav Jung
  • 1987: 1ª Conferência Nacional de Saúde Mental
  • 1995: Lei da Reforma Psiquiátrica do DF, a 975 de 1995
  • 1990: Declaração de Caracas, Lei n. 9.867, de 1999
  • 2001: Aprovação da lei 10.216, a lei antimanicomial

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