>> entrevista MIGUEL NICOLELIS Neurocientista

Efeito bumerangue ajudou a chegar às 500 mil mortes

Cientista tinha estimado, em março, que este mês o Brasil alcançaria o patamar de meio milhão de óbitos provocados pela covid-19. Para ele, ao circular entre capitais e interior, novo coronavírus se espalha, pois a vacinação é lenta e há vários erros na condução da pandemia

Pedro Ícaro*
postado em 22/06/2021 02:42 / atualizado em 22/06/2021 02:42
 (crédito: Ed Alves/CB/D.A Press)
(crédito: Ed Alves/CB/D.A Press)

O Brasil atingiu a marca de 500 mil mortes pela covid-19 no último sábado, condição que, de acordo com o neurocientista Miguel Nicolelis, é resultado de um efeito bumerangue da doença — que, segundo ele, é a constante transição do novo coronavírus entre as capitais do país e o interior, numa frequente ida e vinda do micro-organismo, que alimenta o ciclo da infecção sem que haja uma barreira capaz de detê-lo. Em entrevista, ontem, ao CB.Poder — uma parceria entre o Correio Braziliense e a TV Brasília —, ele explicou esse efeito em um estudo publicado no jornal científico Scientific Reports, lembrando que, nos três primeiros meses da pandemia, 85% dos casos de covid-19 no Brasil se espalharam a partir da cidade de São Paulo, pois a capital paulista tem um dos maiores aeroportos internacionais do país, além de importantes eixos rodoviários em vão em todas as direções. Autoridade mundial da neurociência, Nicolelis estimou, em março, que o Brasil chegaria neste mês às 500 mil mortes por causa de erros no manejo da pandemia. Apesar do avanço da vacinação, ele continua pessimista e calcula que o país pode entrar 2022 com mais de um milhão de mortos na pandemia.

Por que essa tragédia veio antes daquilo que o senhor esperava e por que chegamos a esse número tão devastador para tantas famílias em nosso país?
Chegamos a esse número trágico por causa de uma série de erros graves, desde o início da pandemia, que foram se acumulando e produziram duas ondas extremamente letais. Toda essa falta de manejo, em nível nacional, gerou uma série de facilidades para que o vírus se espalhasse por todo o território nacional. A previsão que eu fiz em março era para julho, com o erro da estimativa que era mais ou menos o final de junho, começo de julho. Então, caiu bem dentro do que os modelos estavam prevendo três meses atrás. Mas é extremamente trágico que nós tenhamos atingido meio milhão de vítimas fatais.

O que traz o estudo publicado na Scientific Reports?
Identificamos os três fatores principais que explicaram o espalhamento geográfico da pandemia nos primeiros seis meses da primeira onda, e identificamos quais foram as cidades que foram as grandes espalhadoras de casos. Por exemplo: São Paulo espalhou, nas três primeiras semanas de março, quase 85% dos casos do Brasil inteiro. Com 17 capitais, nós conseguimos explicar 98% do espalhamento, que se deu, principalmente, da costa brasileira e de Brasília para o interior do Brasil, via grandes rodovias federais que cruzam o país. Mostramos, também, que a distribuição desigual de leitos de UTI no Brasil, concentrada nas capitais, foi responsável talvez pelo maior movimento de pacientes da história do país, se considerarmos a primeira onda e, provavelmente, agora a segunda. O maior número de pessoas da história do Brasil se deslocou do interior dos estados para as capitais em busca de socorro médico e caracterizamos esse fluxo de efeito bumerangue em todas as capitais. Mostramos que todos os caminhos possíveis, rodovias, espaço aéreo, até os rios da região Norte, foram conduítes de pacientes do interior de volta para as capitais em busca de socorro médico.

Como será o efeito bumerangue daqui para frente? O que deverá ser feito para evitá-lo?
Nesse trabalho que publicamos, hoje, na Inglaterra, mostrou que o vírus chegou à costa nos aeroportos internacionais dessas grandes capitais. Migrou para o interior quando chegou e gerou casos graves, em grandes números. Essas pessoas não tinham para onde ir, porque a infraestrutura hospitalar de leitos de UTI no interior brasileiro é muito pequena. Então, esses pacientes tiveram que retornar às capitais — ou seja: primeiro, a ida da capital para o interior e, depois, do interior para a capital. Se somarmos a primeira e a segunda onda, nós provavelmente tivemos o maior movimento de pacientes graves do interior para a capital da história do Brasil. É um movimento populacional gigantesco, e nós vimos que, infelizmente, a maioria dessas pessoas faleceu nas capitais. Com isso, houve uma sobrecarga dos leitos de UTI existentes nas capitais.

O senhor acha que a infraestrutura que temos de saúde foi uma das responsáveis por essa tragédia que vivemos hoje? Se tivéssemos uma estrutura melhor, isso poderia ter sido evitado? Ou teríamos que ter feito um lockdown sem concessões?
A estrutura do serviço único de saúde brasileiro, na realidade, salvou o Brasil de uma tragédia ainda maior. Infelizmente, o SUS (Sistema Único de Saúde) vem sofrendo cortes de verbas nos últimos anos, que não ajudaram de forma alguma o combate à pandemia. Mas se tivéssemos, de acordo com nossos estudos, feito um lockdown no começo de março do ano passado, e criado barreiras sanitárias nas grandes rodovias brasileiras, nós, provavelmente, teríamos evitado a perda de dezenas de milhares de vidas e, com isso, reduzido a dimensão dessa segunda onda. Tivemos um ano, depois, então, deixamos de fazer o beabá do manejo de espalhamento do vírus e, com isso, sobrecarregamos o sistema de saúde, que sofreu dois grandes impactos. Agora, o sistema se prapara, já num estado de colapso, a receber um terceiro grande impacto, uma terceira grande onda que se avizinha no nosso horizonte.

Saímos da primeira onda? Por que nunca tivemos um número de mortes baixíssimo ou uma proliferação menor do vírus? Como o senhor avalia isso? Como define essa questão das ondas no Brasil?
Existe o termo mais acadêmico de onda, que requer um pico e um vale profundo com uma redução bem grande de casos e mortes que nós nunca experimentamos. Poderíamos usar a palavra degrau ou repique — primeiro, segundo e terceiro degrau, ou primeiro, segundo e terceiro repique. A palavra “onda” é mais fácil de entender pela flutuação dos picos e dos vales. Só que, no Brasil, os vales nunca foram profundos; sempre se estabilizaram em níveis muito altos de casos e mortes. Voltamos para um patamar entre 3 mil óbitos diários e estamos nos aproximando de 100 mil casos diários. Então, vemos um começo dessa subida de um novo degrau no país em várias regiões ao mesmo tempo.

O presidente Jair Bolsonaro insiste nos tratamentos alternativos, digamos assim, contra a covid-19. O senhor considera que o Brasil vai viver uma terceira onda com dificuldades? Há esperanças de sairmos dessa pandemia?
Com uma liderança que nega a ciência, que nega as medidas mais elementares, como o uso de máscara, isolamento social, lockdown, e que não tem empatia humana para se manifestar em um momento que o Brasil atinge maior número de perdas de vidas humanas num único evento na sua história, é muito difícil que esse governo faça qualquer coisa adequada daqui para frente. A vacinação avança lentamente e precisamos aumentar o ritmo tanto da primeira como da segunda dose, e nós teríamos que combinar tudo isso com medidas não farmacológicas de aumento do isolamento social, redução de fluxos das pessoas, uso de máscara. Sem isso acoplado à vacinação, como o Chile mostrou muito bem, a gente não consegue sair dessa situação de patamares altos de casos e de óbitos com a transmissão elevada em todo o território nacional. O Brasil foi colocado no meio desse furacão pela inépcia, pela incompetência e pela falta de reconhecimento do governo federal, em particular do presidente da república, de coisas absolutamente banais que deveriam ter sido implementadas — como fechar o espaço aéreo no início da pandemia. Nosso estudo mostra muito claramente por onde o vírus entrou, pelos aeroportos internacionais brasileiros, e como essa entrada permitiu o espalhamento do vírus pelas rodovias brasileiras, que nunca foram algo de barreiras sanitárias adequadas.

O senhor poderia explicar a importância de tomar a segunda dose da vacina?
É fundamental. Temos centenas de milhares de pessoas que não apareceram para tomar a segunda dose e, sem ela, você não atinge o máximo de imunidade que a vacina oferece, não é 100%, mas é uma imunidade que protege contra casos graves, contra internação, contra as manifestações mais deletérias e letais da doença. É fundamental, na data marcada para o retorno, que as pessoas voltem para tomar a segunda dose. E que elas continuem usando máscara, mantendo o máximo grau de isolamento social que se possa ter. Porque os riscos continuam até essa segunda dose, e tem que esperar de 20 dias a 30 dias da segunda dose para ter o pico de imunidade. E, ainda sim, continuar tomando os cuidados devidos.

Temos um outro problema com relação à vacinação: as pessoas estão querendo escolher a vacina devido a possíveis efeitos. Gostaria que o senhor explicasse que vacina no braço é o que importa!
Exatamente isso. A melhor vacina é aquela a que você tem acesso e pode ser vacinado no momento em que você vai no posto de saúde. Temos três vacinas que foram aprovadas que oferecem imunidade que reduzem dramaticamente o risco de morte e de casos graves. Então, é fundamental que as pessoas se conscientizem de que, nesse momento, a missão é se vacinar. Se tiver a vacina X, Y ou Z, na realidade o que você quer é a vacina. A melhor vacina é a que está disponível naquele momento.

*Estagiário sob a supervisão de Fabio Grecchi

 

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