VIOLÊNCIA DOMÉSTICA

Lei obriga síndico a denunciar violência doméstica; prédio usa botão de socorro

A lei paulista, sancionada dia 15, passa a valer na segunda quinzena de novembro. Síndicos ou administradores deverão informar agressões ou suspeitas de violência em até 24 horas. Além disso, exige a fixação de cartazes, placas ou comunicados que divulguem a lei e orientem as denúncias.

Agência Estado
postado em 25/09/2021 18:03
 (crédito: Ed Alves/CB/D.A Press )
(crédito: Ed Alves/CB/D.A Press )

O governo de São Paulo sancionou lei que obriga condomínios residenciais e comerciais a informarem casos ou indícios de violência doméstica contra mulheres, crianças, adolescentes ou idosos. Ao menos outros 15 Estados e o Distrito Federal criaram regras similares nos últimos dois anos. Mas, antes mesmo dessas normas, síndicos e moradores já fazem campanhas de conscientização e adotam até botão de socorro. Para especialistas, a medida, na prática, traz desafios - desde evitar riscos para vítimas e denunciantes até o tipo de sanção por descumprimento.

A lei paulista, sancionada dia 15, passa a valer na segunda quinzena de novembro. Síndicos ou administradores deverão informar agressões ou suspeitas de violência em até 24 horas. Além disso, exige a fixação de cartazes, placas ou comunicados que divulguem a lei e orientem as denúncias. O governador João Doria (PSDB), porém, vetou multa, que havia sido aprovada pela Assembleia, sob argumento de que isso não seria competência do Estado.

Dos Estados que já têm a legislação, 11 - como Distrito Federal, Bahia e Pernambuco, com penas de até R$ 10 mil - preveem multa. A ausência da sanção financeira, para juristas, limita o alcance da lei (mais informações nesta página). Mas eles dizem que essas normas têm, sobretudo, função educativa, no objetivo de romper com a cultura de que "em briga de marido e mulher não se mete a colher".

Também tramita um projeto de lei nacional com previsão de cobrança ao síndico ou condomínio que descumprir a regra. A proposta, já aprovada no Senado, está na Câmara. Diante da pandemia e do isolamento social, houve alta das denúncias de violência doméstica e risco maior de subnotificação.

Para Elisa Costa Cruz, defensora pública do Rio, a atuação dos condomínios é essencial, uma vez que a violência doméstica ocorre em lugares privados. "A vida em condomínio permite alguns conhecimentos mais facilitados, seja porque você pode ouvir, seja porque os condôminos podem perceber as mudanças de comportamento", argumenta.

Susto

 

Sirlei Damasio Barbosa, síndica de dois condomínios em Jundiaí (SP), enfrentou situação de violência entre moradores. Ela conta que o ex-marido de uma vizinha, de madrugada, conseguiu entrar no condomínio, pois a moradora havia esquecido de retirar o acesso dele na portaria. Ele invadiu o apartamento e cometeu uma série de agressões contra a ex e seu atual namorado. Além de destruir o local, ameaçou matá-los com uma faca.

Sirlei, que também mora no residencial, chamou a polícia e acionou a segurança patrimonial quando ouviu gritos. O porteiro, por sua vez, trancou todas as saídas do prédio até a chegada das autoridades. "Foi uma noite de terror, que só terminou com a perícia policial indo embora de manhã", resume ela, que já viu episódios do tipo mais de uma vez e se sente insegura para agir. "Também sou mulher."

Neste ano, Roger Prospero, síndico do Magic Condominium Resort, em Santo Amaro, zona sul da capital, fixou cartazes de incentivo à denúncia de violência doméstica e com informações sobre como agir. "Não tivemos relato de caso interno, mas nos preocupamos que as informações não cheguem por receio de denúncia", explica ele, que também preparou disparos de informação em listas de transmissão do WhatsApp, preocupado com a alta de violência na pandemia.

Na opinião de Prospero, é preciso dar amparo aos síndicos na implementação da nova lei. "Gostaria que as autoridades públicas não se limitassem a promulgar a lei, deixando todos os envolvidos sem a devida orientação", afirma.

Colocar cartazes e o disparo de e-mails informativos também foi uma medida proposta pela administradora de condomínios e imóveis Graiche, ainda no início de 2020. Luciana Graiche, vice-presidente do grupo, conta que o grupo também ofereceu uma cartilha aos síndicos, com orientações de como conscientizar moradores e como denunciar. Além disso, desenvolveram um botão de socorro para os mais de 90 mil condôminos atendidos por eles.

Ao apertar o botão "Quero ajuda" no site ou no app do serviço condominial, a vítima acessa um formulário com perguntas simples. As respostas são enviadas à equipe do SOS Justiceiras, idealizado pela promotora de justiça Gabriela Manssur, que inicia contato via WhatsApp para prestar auxílio.

O ano de 2020 também foi de mais atenção para os condomínios de responsabilidade de Fernanda Françoso, na capital paulista. Violência doméstica virou assunto presente em todas as reuniões e assembleias com os condôminos. Além disso, a síndica dedicou-se a orientar todos os funcionários dos cinco residenciais que cuida, a contatar a polícia quando ouvirem "brigas mais calorosas". "Os colaboradores precisam estar em sintonia", afirma. Sobre a nova lei, Fernanda acredita que o síndico fica "um pouco vulnerável", já que os vizinhos podem enxergar como "intromissão".

A lei paulista ainda será regulamentada pela Secretaria de Segurança Pública. Procurada, a pasta não deu mais detalhes sobre a implementação da regra.

Falta de multa pode atrapalhar, diz especialista

 

O veto do governador João Doria (PSDB) à aplicação de multa em caso de descumprimento da lei que obriga condomínios a reportarem casos de violência doméstica é vista por especialistas como uma limitação para que a norma tenha mais efeito. O governo argumentou que estipular uma sanção financeira não seria de competência estadual, mas federal.

"Incumbe à União legislar sobre normas gerais, de alcance nacional, cabendo aos Estados pormenorizá-las com fundamento em sua competência suplementar", escreveu o governo, no documento em que explica o veto. Elisa Costa Cruz, defensora pública no Rio, concorda com a justificativa, mas prevê dificuldades com o veto. "Se houver o entendimento que a lei se refere a Direito Civil, por criar uma obrigação ao síndico, não deveria ter sido feita no Estado de São Paulo, mas no Congresso Nacional", diz. "O veto é ruim porque a ausência de punição deixa tudo no voluntarismo, no desejo que se realize."

Especialista em Direito Civil, Renato de Mello Almada também prevê limitações diante da falta de penalização financeira. "No Brasil, quando há uma lei sem previsão de sanção, ela acaba caindo no esquecimento", afirma. "A partir do momento que temos isso enquanto regra federal, derruba-se o argumento de incompetência legislativa e se torna uma ferramenta efetiva de combate à violência doméstica", avalia Almada. Aprovado no Senado, o projeto de lei nacional tramita na Câmara.

Já Marília Golfieri Angella, especialista em Direito da Mulher, não sente falta de multa. "A lei cumpre o papel dela de levar informação à população sobre a violência e a responsabilidade da sociedade."

Denúncia e sigilo

Para Elisa, outros pontos negativos foram a ausência de incentivo mais forte para que outros vizinhos denunciem e uma regra de sigilo, que assegure que o condomínio, por meio do síndico ou administrador, receba a denúncia de forma anônima. "Olha o medo que as pessoas sentem. Muitas não se sentem seguras de que vão contribuir", alerta a defensora.

Vizinha salvou jovem de agressões

Maria (nome fictício), de 26 anos, se salvou justamente por causa da ajuda de uma vizinha. Ela era vítima de agressões constantes do ex-companheiro. "Ele me jogava de madrugada no banho gelado, batia muito na minha cara na frente das crianças, me jogava fora de casa. Eu passava madrugadas na rua? Aquilo era normal para mim, já estava acostumada", conta sobre o relacionamento, que durou quatro anos. "O tapa não dói tanto quanto as palavras. Ele entrava na minha mente", relata a vítima, que se sentia sozinha e desamparada. Distante da família e com duas filhas, não acreditava que seria capaz de viver por conta própria e deixar o lar onde passou pelos "piores anos de sua vida".

Na pandemia, a situação ficou ainda pior, pois o ex-companheiro perdeu o emprego, o que o deixou ainda mais agressivo. Até que, em setembro, uma vizinha resolveu intervir ao escutar os barulhos de agressão. "Ela arrombou minha porta, catou ele de cima de mim, deu a mão para mim e me tirou daquele lugar. Se não fosse por ela, ainda estaria sendo agredida ou estaria morta", conta Maria.

Invadir a casa de uma vítima de violência não é o recomendado. Especialistas alertam que atitudes como essa são imprudentes e colocam o cidadão em risco. Quando identificar ou suspeitar que alguém esteja sofrendo violência doméstica, a orientação é ligar para as autoridades policiais. A vizinha ajudou Maria a buscar a polícia. Na época, a vítima também estava empregada, o que lhe deu um sentimento de segurança para pôr fim ao ciclo de violência.

Mesmo um ano após o ocorrido, Maria ainda convive com as sequelas psicológicas. Ela desenvolveu um quadro depressivo, passou a ter intenções suicidas e a se automutilar. "Na hora de dormir, vinha tudo de novo na cabeça: as agressões, a gritaria, os tapas. Passava madrugadas e madrugadas em claro. Após acompanhamento psicológico, ela diz se sentir melhor. Maria conta que as filhas, hoje com 3 e 4 anos, se recordam nitidamente das agressões.

"Violência não é tão simples, tem seus efeitos reflexos",diz a defensora pública Elisa Costa Cruz. "As violências raramente se restringem a uma pessoa só, afetam uma cadeia. Às vezes, os próprios vizinhos vivem uma situação de angústia, pois escutam a violência e ficam sem saber o que fazer."

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

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