“Voltar pra casa é um alívio. É voltar inteiro, vivo, e com a sensação de missão cumprida. Mas às vezes a gente não volta. O Roberto, por exemplo, foi e não voltou”, desabafa o tenente Daniel Lipovetsky ao lembrar o colega que morreu durante combate a incêndio na última quarta-feira, o sargento Carlos Roberto da Silva .
Conhecidos como Soldados do Fogo, os bombeiros militares desafiam diariamente o limite entre a vida e a morte. E o combate tem sido mais intenso nesta época do ano em que o clima seco castiga Minas Gerais : entre abril e setembro, o Corpo de Bombeiros registrou mais de 20 mil chamados para ocorrências relacionadas a queimadas.
Muitas vezes, esses focos começam como uma atitude irresponsável e se transformam em labaredas que matam a vegetação e animais, ameaçam ou atingem pessoas e imóveis, poluem o ar e ainda põem em risco os próprios combatentes.
Somente em setembro, os Bombeiros receberam 4.100 chamados até o dia 24. Nos nove primeiros meses, é possível afirmar que 2021 bateu recorde de atendimento contra o fogo em relação aos últimos três anos. Foram mais de 21.700 ocorrências. No ano passado, o acumulado de 12 meses ficou em 20.741. Em 2019, foram 18.567.
A estatística se traduz na prática sob a forma do suor no trabalho dos bombeiros, no olhar de cansaço e no desabafo indignado: “Estamos cansados”. A reportagem do Estado de Minas ouviu esses combatentes que estão na linha de fogo, lidando com a dor de um trabalho exaustivo, enfrentando calor, sede e perigo na tentativa de apagar labaredas sob sol escaldante para cumprir o propósito da profissão: salvar vidas e bens alheios.
Dever cumprido
Tenente Daniel Lipovetsky, 33 anos
Bombeiro há 15 anos
Coordena equipe no 2º Batalhão, em Contagem, Grande BH
“É muito triste ver pessoas perdendo seus bens, parentes ou animais de estimação. O complicado da profissão é ser técnico e ter esse olhar de empatia para lidar com o sofrimento. Os incêndios florestais são bastante exaustivos.
Tem o calor do fogo e o do ambiente. A gente trabalha com fardamento completo, equipamentos de proteção, tudo isso nos deixa exaustos. No fim de cada operação, olhamos para a tropa e todos estão desgastados. É um cansaço que vai se acumulando.
Este é sempre um período crítico, em que a gente vem trabalhar já sabendo exatamente o que vamos encontrar. Permanecemos horas combatendo o fogo, nos deslocando em distâncias grandes. Os incêndios florestais desgastam física e psicologicamente. Às vezes, achamos que é só mato queimando, mas o fogo na vegetação passa para um galpão de empresa em que há maquinário, substâncias inflamáveis. São riscos...
A pessoa pensa que o fogo é tranquilo e depois de queimar o amontoado de lixo ou folhas, aquilo se alastra e há todo um desdobramento impensável. Toda uma logística: vários órgãos, viaturas, brigadistas... Precisamos conscientizar a população.
Com tudo isso, voltar para casa é um alívio. Voltar inteiro, vivo e com a sensação de missão cumprida. É o que fazemos. A gente se entrega para a profissão que juramos desempenhar da melhor maneira possível, que é salvar vidas e os bens das pessoas.”
Futuro cinzento
Sargento Anderson Pereira Rodrigues, 45 anos
Bombeiro há 28 anos
Trabalha no 2º Batalhão, em Contagem, Grande BH
“A gente trabalha com diversidade grande de temperatura, da topografia do terreno, de acesso ao local. Às vezes, vamos combater um incêndio dentro de uma mata e precisamos caminhar três quilômetros carregando material e alimentação. É uma atividade em que sofremos um pouco, devido às adversidades.
A atividade de bombeiro operacional requer condicionamento e preparo para lidar com essa rotina, mas o incêndio florestal é muito desgastante. Tem situações de combate de 12 ou 24 horas ininterruptas. A gente faz uma oração e segue cansado, mas sabemos que no dia seguinte conseguiremos descansar.
Quando atendemos a essas ocorrências sabendo que são criminosas, eu me sinto pequeno e frustrado. Ficamos decepcionados, porque são incêndios que poderiam ser evitados. Acredito que na maioria das situações falta conscientização.
Viemos daquela cultura de usar o fogo para limpeza e ele vai tomando proporção diferente, em que se perde o controle. É uma ação totalmente devastadora. Passamos por beiras de estradas e o fogo está ardendo. Aquilo não tem utilidade para alguém. É um dano para o meio ambiente, que interfere nas nossas águas e nos nossos ares. Temos o compromisso de deixar um ambiente melhor para nossos filhos e nossa sociedade.”
Dor e frustração
Tenente Sérgio Lamêgo Magalhães, 38 anos
Bombeiro há 11 anos
Coordena equipe no 1º Batalhão, na Região Centro-Sul de BH
“Agora no período de estiagem temos essa demanda específica de incêndio florestal, um período que causa um desgaste, principalmente devido à quantidade de ocorrências e também ao tempo que demora para resolver. O maior problema é o desgaste físico mesmo, relacionado ao calor, ao fato de o militar ter que carregar o próprio equipamento, na maioria das vezes fazendo caminhadas de pelo menos cinco quilômetros até que chegue ao local do foco.
Em diversas situações, militares acabam se acidentando, mas não por questão de mau uso de EPI (equipamento de proteção individual) – muito pelo contrário, acho que o Corpo de Bombeiros nunca esteve não bem protegido em relação aos equipamentos. Mas tem a questão do cansaço físico, que acaba gerando certa desatenção no deslocamento no meio da mata e essa desatenção pode acabar em acidente. Pode haver torções, quedas e é grande o perigo da falta de visibilidade.
Acho que medo não é muito a principal palavra. Ele acompanha a gente em todas as ocorrências, não só de incêndio florestal, mas acho que a sensação quando a gente não consegue controlar o fogo no tempo que se previa é de frustração. É a palavra certa.”
Círculo de fogo
Sargento Roberto Carlos Babeto, 48 anos
Bombeiro há 29 anos
Trabalha no Pelotão de Combate a Incêndios Florestais, com sede em BH
"Certa vez, eu e meu primo, que foi para a reserva no ano passado, fomos cercados pelo fogo na Serra do Sabonetal, nas margens do Rio São Francisco (Itacarambi, Norte de Minas). A gente aguardava a aeronave para nos retirar e avistava o fogo vindo distante, com uma característica muito parecida ao que vimos em Arinos esta semana .
Estávamos em um lugar tranquilo para o pouso da aeronave, na estrada, mas o fogo pulou a estrada dos dois lados. Não tinha mais como ninguém acessar nem como a gente sair. O fogo foi fechando, até que não teve mais como correr e a gente teve que se abrigar da melhor forma possível.
Queimou tudo: nossa roupa, derreteu o capacete... As ferramentas com cabo de madeira queimaram, as bombas começaram a retorcer por causa do calor. E nós nos ‘sapecamos’ todo… Por nossa sorte, um dos brigadistas veio com a caminhonete, passou e nós pulamos na caçamba.
Foi como conseguimos sair daquela situação, a mais crítica que enfrentei, ao lado de Arinos, agora.
Em Arinos, queimou bastante, foi muito grande, muito difícil, não tem condição de combate. As equipes vão trabalhar muito ainda. Arinos e Paracatu estão em chamas. [O incêndio em Arinos foi debelado ontem, dias depois do depoimento]
Eu não tenho medo. Desde quando eu entrei aqui me vi com o perigo e não tive medo. Por isso eu me machuquei bastante (risada). Num primeiro momento a gente fica chateado porque a gente sabe que o incêndio é criminoso.
Na Serra do Rola-Moça, colocavam fogo, a equipe ia e conseguia apagar. Só que, antes de voltar ao pelotão, já tinham colocado mais. Isso é uma cultura que tem que ter uma punição mais severa. É muito difícil também pegar quem colocou fogo."
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