Há quase 54 anos a lanchonete Oregon ocupa a esquina da rua dos Pinheiros com a avenida Pedroso de Morais.
A hamburgueria fundada pelo português Raimundo Pereira Guedes, falecido em 2020, fez clientela com uma receita secreta de maionese e um horário de funcionamento estendido, que, até o início da pandemia, entrava pela madrugada.
Em 11 de agosto, a família de Raimundo, que hoje toca o negócio, foi surpreendida com uma carta da administradora do imóvel — um edifício residencial de 8 andares. O texto informava que os atuais donos tinham intenção de vendê-lo e abria a possibilidade para que os atuais inquilinos cobrissem a oferta e permanecessem no local, uma formalidade da Lei do Inquilinato.
Desde então, a família tenta entender se o prédio vai ser demolido, se vai ser reformado e, nesse cenário, qual seria o destino da lanchonete.
"Eles têm todo o direito de vender o prédio, o problema é a falta de transparência", diz Jairo, genro de Raimundo, hoje à frente da operação.
"Não sabemos o que vai acontecer, se vamos ter que sair. Eles demoram pra responder, não dizem nada concreto. A gente precisa de tempo pra se planejar, não dá pra fazer as coisas assim."
Enquanto isso, o prédio vai esvaziando. Depois da carta enviada em agosto, os moradores das 28 unidades residenciais têm ido embora, um a um.
Alguns deles, ouvidos pela reportagem, afirmam que há semanas funcionários de uma startup chamada Yuca circulam pelo prédio avaliando elevadores, rede elétrica e outros aspectos da estrutura. A empresa aluga apartamentos compartilhados — uma versão repaginada das velhas repúblicas de estudantes, batizada pelo mercado imobiliário de "coliving".
Procurada, a Yuca não confirma as tratativas de compra e diz que "não pode comentar sobre negociações em curso".
"Sobre nossa política de aquisição de prédios, a empresa busca prédios que hoje estão defasados, muitos com problemas estruturais, para reformar e operar no modelo de locação residencial de longa duração. Nossos projetos sempre buscam preservar a arquitetura do edifício e manter sua conexão com o bairro", diz a nota.
A JJC Participações, que representa os atuais donos do imóvel, afirmou por meio de seu advogado que tem todos os canais de comunicação abertos com os inquilinos para prestar os esclarecimentos e que está seguindo o que determina a lei.
Saem as casas geminadas, entram as torres de alto padrão
Enquanto conversa com a reportagem, em uma mesa no fundo da lanchonete, Jairo aponta para os empreendimentos imobiliários que estão subindo no entorno. Pelo menos uma dezena, ele contabiliza.
Desde 2019, a cidade de São Paulo experimenta um novo boom imobiliário. Pinheiros, em particular, virou um grande canteiro de obras. Cada vez mais os prédios baixos e as casas geminadas que dão contorno ao bairro têm dado lugar a tapumes de empreendimentos imobiliários de alto padrão.
Um deles divide parede com a estação Fradique Coutinho do metrô: unidades com 142 m², três suítes, duas vagas de garagem.
A região da subprefeitura de Pinheiros é a que concentra maior número de alvarás de demolição na cidade, como mostram os dados da prefeitura levantados a pedido da reportagem da BBC News Brasil.
No ano passado, dos 1.363 emitidos no município de São Paulo, 382, ou 28%, se concentraram nesta que é apenas uma entre 32 subprefeituras.
O volume de demolições em 2020, contabilizando o volume total na cidade de São Paulo, foi 85% maior do que os registros de 2018, antes do início da retomada do setor da construção na capital.
2019 já havia registrado crescimento expressivo, de 61% sobre 2018, com 1.189 demolições. Naquele ano, as regiões mais afetadas foram Vila Mariana (227), Mooca (168), Santo Amaro (144) e Lapa (117).
Os números de 2021, que vão até o dia 18 de agosto, contabilizam 535 alvarás de demolição, 120 dos quais na região da subprefeitura de Pinheiros.
O efeito pandemia
Veronica Bilyk, dona de um restaurante polonês no bairro até pouco tempo, diz que a pandemia ajudou a acelerar o avanço do mercado imobiliário sobre Pinheiros.
"Antes o Brasil já não ia bem, posso te dizer pelo meu próprio negócio", comenta.
"Com a pandemia, você tinha que resolver se fechava de vez ou tentava sobreviver. Aí vem uma especulação dessas, encerrou o caso."
Na rua dos Pinheiros, uma das vias arteriais do bairro, conjuntos com quatro ou cinco casas onde funcionavam pequenos comércios vieram abaixo em série.
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A multiplicação de novos empreendimentos imobiliários gerou reação entre moradores, que se organizaram contra o que veem como uma "verticalização desordenada", que por vezes descumpre as diretrizes do Plano Diretor Estratégico aprovado em 2014 que fomentam o adensamento próximo aos eixos de transporte e estimulam um maior uso do transporte público.
"Você acha que o pessoal que mora nesses apartamentos enormes com duas, três vagas de garagem vai andar de ônibus e metrô aqui?", questiona Veronica, que ajudou a fundar, em meados de julho, a associação Pró-Pinheiros.
Uma das demandas do grupo — que dividiu os voluntários em equipes nas áreas de comunicação, legislação, mapeamento e manifestação — é a preservação do quadrilátero baixo entre as ruas Mateus Grou e Virgílio de Carvalho, que vem sendo alvo constante do assédio de incorporadoras, segundo os moradores.
"Nosso barulho está surtindo efeito. Ipiranga já veio pedir 'estágio' com a gente, o que é ótimo, a gente tem que se mobilizar mesmo para praticar cidadania ativa."
Verticalizar versus adensar
A movimentação trouxe novamente à superfície o debate sobre verticalização — uma questão com a qual, mais cedo ou mais tarde, praticamente toda grande metrópole vai ser confrontada.
Em uma megacidade, construir "para cima" não seria um caminho para resolver a lógica de exclusão que costuma desenhar a expansão da malha urbana?
A ideia é que, quando a metrópole cresce para os lados, horizontalmente, ela vai expulsando os moradores de menor renda para as periferias. Viver mais próximo do centro, perto dos eixos do sistema público de transporte, dos parques, teatros, museus, cafés e restaurantes vira privilégio de quem consegue pagar o preço da especulação imobiliária.
Assim, se insurgir contra a verticalização seria elitismo, uma crítica que os moradores do bairro têm ouvido.
A professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP (FAU-USP) Raquel Rolnik, uma das defensoras das medidas aprovadas no Plano Diretor que estimulavam a verticalização próximo dos eixos de transporte da cidade, vê uma confusão no debate atual.
"Verticalização e adensamento não são necessariamente sinônimos. Podem ser, mas não são necessariamente", pontua.
"Quando se trata de uma verticalização para renda mais alta, o que você tem são muitos metros de área construída, apartamentos grandes, muita garagem, e pouca gente", ela ressalta.
Nesse sentido, verticalizar não significa automaticamente que mais pessoas vão ocupar um mesmo espaço.
"As maiores densidades populacionais da cidade hoje são as favelas, não é Perdizes, não é Moema, que estão cheios de prédios", acrescenta.
Para a professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Presbiteriana Mackenzie Lizete Maria Rubano, moradora de Pinheiros há mais de 20 anos, verticalizar também não implica necessariamente democratizar o acesso à infraestrutura e à qualidade de vida do bairro.
"A questão que tem se colocado sobre esses movimentos [contra a verticalização], que são essencialmente de classe média, é como estivessem resistindo à democratização de São Paulo. Tudo o que a gente gostaria é que a cidade fosse mais democrática, mas é a última coisa que está acontecendo", diz ela.
Em sua avaliação, a discussão sobre a verticalização tira o foco de outros problemas urgentes da cidade de São Paulo, como o déficit habitacional e a insuficiência das políticas públicas para habitação social.
Segundo a arquiteta, uma série de dispositivos já existentes na lei permitem a construção de moradias de interesse social em regiões mais centrais da capital, mas não são utilizados.
Um deles é o PEUC, sigla para Parcelamento, Edificação e Utilização Compulsórios, que obriga os donos de imóveis vazios ou subutilizados a dar-lhes um destino, sob pena de desapropriação. A região central de São Paulo ainda concentra um volume elevado de imóveis ociosos, que poderiam ser transformados em apartamentos para famílias de baixa renda, diz ela.
Ela cita ainda o exemplo do Fundo Municipal de Urbanismo (Fundurb), dinheiro que vem da outorga onerosa que as construtoras pagam à prefeitura para construir além do limite estabelecido para cada região.
Até 2019, uma norma estabelecia que 30% dos recursos deveriam ser destinados à aquisição de terrenos bem localizados para a construção de habitação de interesse social — um caminho para viabilizar habitações populares em áreas consideradas mais centrais na capital.
"Mas isso nunca foi posto em prática."
Em contrapartida, ela acrescenta, foram os recursos do mesmo Fundurb que financiaram a reforma de mais de R$ 100 milhões do Anhangabaú.
"Quem disse que isso era prioridade?", questiona a professora.
À reportagem, a prefeitura de São Paulo afirmou que tem feito "investimentos massivos em melhorias urbanísticas com recursos do Fundurb" em áreas vulneráveis. Por meio de sua assessoria de imprensa, disse ainda que 60% dos recursos possuem destinação específica para habitação e mobilidade e que, "caso esses recursos não sejam aplicados, a lei prevê que eles podem ficar reservados por até dois anos para o cumprimento de seus objetivos. Após esse prazo, o Conselho Gestor do Fundo poderá dar destinação diversa".
Sobre a construção de moradias voltadas para as famílias de mais baixa renda, a prefeitura acrescenta que, em "2019 e 2020, cerca de 40% de tudo que foi licenciado nos Eixos de Estruturação da Transformação Urbana foram destinados para Habitação de Interesse Social (HIS) e Habitação de Mercado Popular (HMP)", voltadas para famílias com renda de 0 a 10 salários mínimos.
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