Cerca de 35 mil crianças e adolescentes foram brutalmente assassinados no Brasil entre 2016 e 2020. Isso significa dizer que 7 mil pessoas com até 19 anos de idade foram mortas por ano, no país, nesse período. Os números estão em levantamento lançado, ontem, pelo Unicef e o Fórum Brasileiro de Segurança Pública. O estudo traça um panorama chocante da violência letal e sexual contra crianças e adolescentes no Brasil.
De acordo com o documento, nesse período, ao menos 1.070 crianças de até nove anos foram mortas de maneira violenta. Dessas vítimas, 41% eram meninas e 59%, meninos; 61% eram negras e 38%, brancas. Os dados mostram que a maior parte foi assassinada dentro de casa.
A violência urbana foi a causa da maior parte das mortes de crianças e adolescentes entre 10 e 19 anos. Segundo o documento, em média, 5% das vítimas estavam na faixa etária de 10 a 14 anos, e 95% tinham entre 15 e 19 anos. Contudo, os dados reais podem ser ainda mais dramáticos, já que existe grande subnotificação de casos no país e, frequentemente, há informações imprecisas em boletins de ocorrência policial.
Segundo a diretora-executiva do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Samira Bueno, o maior desafio é o preenchimento do boletim de ocorrência. "A gente sabe que o número é maior. Por isso, trabalhamos com uma estimativa conservadora”, disse.
“É possível afirmar que esse é um número mínimo, uma vez que alguns estados não forneceram os dados abertos por idade das vítimas, ou de todos os anos da série histórica. Assim, é possível considerar que se trata de um número subestimado. Foram desconsiderados dados de mortes de crianças menores de um ano do Espírito Santo, e de cinco a nove anos de Roraima, por inconsistência nas bases”, diz trecho do estudo.
Polícia que mata
O trabalho revela ainda que, só em 2020, 787 crianças e adolescentes foram mortas por policiais no Brasil. Destas, cerca de 80% eram negras e 90%, meninos. O número representa 15% do total das mortes violentas intencionais nessa faixa etária, e indica uma média de mais de duas mortes por dia. O estado de São Paulo é onde há maior número absoluto dos casos (44%), seguido por Amapá, Sergipe, Pará e Rio de Janeiro.
De acordo com Samira Bueno, esse tipo de assassinato acontece em conseqüência de um padrão de policiamento ostensivo. “No meio de um patrulhamento, o policial acaba se deparando com algum tipo de situação, resultando na morte de suspeitos. É um fenômeno que acontece com frequência no Brasil, mas ainda é algo localizado. Tem policiais em vários estados brasileiros que não produzem mortes, mas isto acontece com frequência por conta do padrão do uso da força”, afirmou.
Florence Bauer, representante do Unicef no Brasil, destacou que os dados servem para subsidiar a criação de políticas públicas melhores. “Cada história mostra que tem um ser humano muito jovem morto que, muitas vezes, estava no lugar errado na hora errada. É preciso aumentar o orçamento de prevenção e monitoramento e realizar atividades dentro das comunidades, como prevenção e capacitação de profissionais e da sociedade”, disse.
Violência sexual
O levantamento informa ainda que 179.277 crianças e adolescentes foram vítimas de estupro entre 2017 e 2020 no Brasil. Isso representa uma média de 45 mil casos de violência sexual em cada um dos anos abordados no estudo. Do total de vítimas, 62 mil, ou um terço, eram crianças de até 10 anos.
A maior parte do absusos ocorre contra meninas, quase 80% do total. A maioria foi abusada entre 10 e 14 anos, com prevalência aos 13 anos. As meninas também representam 77% do total das vítimas de estupro entre crianças de até nove anos, e os meninos, 23%. Na faixa etária de 10 a 19 anos, o número delas corresponde a 91% dos registros. Isso indica que, quanto mais velha a vítima, maior a chance de ela ser uma menina. Ainda que as meninas sejam maiores vítimas de estupro, os meninos também estão na mira dos abusadores, em especial os bebês e crianças de até nove anos.
Os dados de 2020 mostram que Mato Grosso do Sul tem a pior taxa de estupros do Brasil. Foram registrados, no ano, 186 a cada 100 mil habitantes. Em seguida, vêm Rondônia (146,2), Paraná (139,7), Mato Grosso (136,5) e Santa Catarina (135,2). Segundo o estudo, apenas os estados do Centro-Oeste mostraram redução dos casos ao longo do período analisado.
Para Mariana Nery, advogada especialista em direito da mulher e sócia da Dias, Lima e Cruz Advocacia, os números chocam, mas não surpreendem. Segundo ela, o Judiciário é machista e, por vezes, não reconhece e não acolhe a vítima como deveria ocorrer. “A Justiça não reconhece a (Lei) Maria da Penha de forma híbrida. Em varas de família, muitas vezes, o abuso é tratado como alienação parental, dizendo que a mãe quer se vingar. As denúncias também não são feitas como deveriam, pois os agentes são despreparados, não têm sensibilidade, agem com desconfiança. Por vezes, parece que não estão com vontade de lidar com esse tipo de caso. A verdade é que a palavra da criança e da mulher tem um valor muito baixo”, afirmou.
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