Veículos

Como montadoras pressionam governo a adiar normas e permitir fabricação de carros mais poluentes no Brasil

Montadoras estão tentando adiar regras para tornar veículos mais limpos, como mostram documentos obtidos pela BBC News Brasil


No dia 4 de novembro, executivos da montadora Renault no Brasil se reuniram com o secretário-executivo do Ministério da Economia, Marcelo Guaranys. Na pauta, um pedido: a fabricante francesa, que é uma das líderes em veículos elétricos no Europa, pediu que o governo encontrasse uma forma de adiar normas que determinam a fabricação de carros mais limpos no Brasil e que estão previstas para entrar em vigor no início de 2022.

Documentos obtidos pela BBC News Brasil mostram como a Renault pediu ao Ministério da Economia para interceder junto ao Ministério do Meio Ambiente para conseguir o adiamento.

Procurada, a Renault e o Ministério da Economia disseram que não iriam se manifestar sobre o assunto. O Ministério do Meio Ambiente (MMA) não respondeu às questões enviadas. A Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores (Anfavea), enviou uma nota dizendo que não comenta ações de seus membros, mas reforçou sua posição pelo adiamento das novas normas. O Instituto Brasileiro de Recursos Naturais Renováveis (Ibama) afirmou que a decisão sobre o assunto não depende do órgão.

A Renault é uma das maiores fábricas de automóveis do mundo e uma das líderes na Europa em veículos elétricos.

Sua ação junto ao governo brasileiro, no entanto, é o episódio mais recente de um intenso movimento do setor automotivo que quer que as autoridades brasileiras atrasem a entrada em vigor das normas do Programa de Controle de Emissões Veiculares (Proconve), que começou em 1986. Esse processo é liderado pela Anfavea.

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Renault mandou ofício ao Ministério da Economia pedindo que a pasta intercedesse junto ao Ministério do Meio Ambiente para continuar a fabricar veículos mais poluentes nos primeiros três meses de 2022 (grifos foram feitos pela reportagem)

O Proconve prevê a redução gradual do nível de gases e partículas emitidos por veículos no Brasil.

Estudos científicos apontam que a diminuição dessas emissões contribui para o combate às mudanças climáticas e redução da incidência de doenças respiratórias.

Os patamares de emissões máximas permitidas para automóveis fabricados e vendidos no país são definidos por resoluções do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama) e classificados por "faixas".

A faixa atual para carros de passeio é chamada de L-6. Para veículos pesados como caminhões e ônibus, chama-se P-7.

Em 2018, o órgão estipulou que a nova fase para carros leves, chamada de L-7, e para veículos pesados (P-8) começam a vigorar a partir de 1º de janeiro de 2022.

No caso dos veículos de passeio, isso significa que a partir do ano que vem, montadoras e importadoras só poderão vender carros que atendam às regras mais limpas.

Para veículos pesados, o cronograma da fase P-8 também começa no dia 1º de janeiro, mas é dividido em fases até 2033.

Na atual fase L-6, carros de passeio podem emitir até 1,3 miligrama de monóxido de carbono na atmosfera por cada quilômetro rodado. Com as novas normas, esse limite baixa para 1 miligrama por quilômetro, uma redução de 23%.

Outra mudança é nas emissões de aldeídos, uma substância tóxica e que pode ser cancerígena. Hoje, o limite é de 20 miligramas por quilômetro. As novas regras preveem 15 miligramas por quilômetro, uma queda de 25%.

Nos veículos pesados, a expectativa é de que a introdução da faixa P-8 traga uma redução de até 90% na emissão de materiais particulados em relação à norma atual.

Desde o ano passado, no entanto, montadoras têm anunciado que teriam dificuldades em atender os prazos estipulados em 2018.

Montadoras culpam pandemia por atraso

O principal argumento delas é que a crise logística causada pela pandemia atrasou o processo de adaptação da indústria automotiva nacional para os novos padrões exigidos. Elas citam, entre outras coisas, a falta de componentes como chips que dependem de semicondutores.

Organizações não-governamentais, porém, contra-argumentam afirmando que um atraso na vigência das novas normais traria prejuízos tanto para o meio ambiente quanto para a saúde da população.

Um estudo realizado pelo Conselho Internacional sobre Transporte Limpo (ICCT, na sigla em inglês), indica que os padrões do P-8 já estão em vigor na maior parte da Europa desde 2015.

O estudo indica ainda que, em 30 anos, a redução nas emissões desse tipo de veículo evitaria 74 mil mortes prematuras no Brasil.

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Em e-mail, Renault diz ao Ministério da Economia que Ibama se manifestou de forma favorável ao adiamento (edições na imagem foram feitas pela BBC News Brasil)
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Em ofício, o presidente do Ibama, Eduardo Bim, diz que a decisão sobre o adiamento não depende do órgão e sim dos ministérios da Economia, Meio Ambiente e Conama (destaques na imagem feitos pela reportagem)

Pelas vias normais, as regras do Proconve só podem ser alteradas pelo Conama, um órgão composto por diversos segmentos da sociedade, mas que, no governo do presidente Jair Bolsonaro teve sua composição alterada, aumentando a participação do governo.

Em maio deste ano, a Anfavea enviou uma carta aos ministérios da Casa Civil, Meio Ambiente e Economia pedindo um adiamento das novas regras de um ano. Procurado, o Ministério da Economia disse que não iria comentar o assunto. A Casa Civil e o MMA não responderam os questionamentos enviados pela reportagem.

A Anfavea também acionou o Ministério Público Federal (MPF) em uma tentativa de obter uma posição favorável ao adiamento das regras, mas o órgão rejeitou o pedido.

Um parecer do MPF de abril deste ano dizia que a prorrogação do prazo para entrada em vigor das novas fases do programa seria "irrazoável" e poderia representar um risco ao meio ambiente e à saúde.

Em outro parecer, a 4ª Câmara de Coordenação e Revisão do MPF, responsável por avaliar questões sobre meio ambiente, se posicionou contra o adiamento das novas regras.

Renault pediu ação da Economia em Ministério do Meio Ambiente

Os documentos obtidos pela BBC News Brasil mostram como a Renault tenta obter uma decisão do governo para adiar as normas que a obrigariam a fabricar veículos mais limpos no Brasil. O pedido era para um adiamento em três meses para que a empresa continuasse a fabricar veículos mais poluentes que os previstos pelo Proconve.

Em um ofício enviado ao Ministério da Economia no dia 6 de outubro, a fabricante francesa pede, textualmente, que a pasta faça uma "ação" junto ao MMA para resolver o assunto.

"Face ao problema, estamos efetuando demanda ao Ministério do Meio Ambiente para que nos seja permitido produzir veículos da fase atual LEV6, nos primeiros três meses de 2022 […] Para tanto, solicitamos uma ação deste ministério junto ao Ministério do Meio Ambiente, justificando a adoção de uma medida de caráter excepcional e urgente", diz o documento assinado pelo diretor de Relações Institucionais da montadora, Marcus Vinícius Aguiar.

O termo "urgente" usado pela Renault é uma alusão ao fato de que o relógio está correndo contra a intenção da fabricante, uma vez que as normas estão previstas para entrar em vigor em pouco mais de um mês.

No ofício, a Renault diz que a crise causada pela Covid-19 afetou suas atividades e impossibilitou a fabricação dos veículos L-6 previstos para serem produzidos em 2021. Segundo ela, haveria 25 mil veículos cuja fabricação foi paralisada pela falta de componentes.

Como ainda não haveria certeza sobre a chegada dessas peças, o risco é de que esses veículos possam ficar impossibilitados de serem vendidos em 2022, quando entrariam em vigor as novas regras de emissão de poluentes. Segundo a fábrica, o prejuízo estimado seria de R$ 55 milhões.

No dia 4 de novembro, três executivos da Renault no Brasil, entre eles o presidente, Marcos Gondo, se reuniram com o secretário-executivo do Ministério da Economia, Marcelo Guaranys, em Brasília. Guaranys é o "número dois" da pasta.

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Empresas dizem que pandemia atrasou adaptação aos novos padrões exigidos

Na semana seguinte, no dia 12 de novembro, um e-mail mostra nova ação da Renault junto ao Ministério da Economia para conseguir a liberação.

O diretor de Relações Institucionais, Marcus Aguiar, enviou à pasta cópias de ofícios que recebeu do Ibama sobre o adiamento. No e-mail, ele diz que o Ibama teria se posicionado de forma favorável ao adiamento.

Os ofícios, aos quais a BBC News Brasil também teve acesso, dizem, no entanto, que o Ibama estaria à disposição para "formatar ou propor encaminhamentos" sobre o assunto, mas que o adiamento das normas seria uma decisão que não depende do órgão.

"A solução para a demanda das montadoras de veículos para flexibilização das regras do Proconve depende de decisão das instâncias superiores, em específico, do MMA e do Conama, bem como de atores relevantes, como o Ministério da Economia, não cabendo, portanto, qualquer manifestação adicional no presente processo", diz um dos dos documentos. Um segundo ofício, assinado pelo presidente do Ibama, Eduardo Bim, segue a mesma linha.

Questionado sobre a ação da Renault, o Ministério da Economia disse que não iria se manifestar sobre o assunto.

ONGs criticam atuação de montadoras

Para o coordenador de advocacy do Instituto Saúde e Sustentabilidade (ISS), Hélio Wicher Neto, a tentativa das montadoras brasileiras de adiar a entrada em vigor das novas fases do Proconve é injustificável. Segundo ele, as montadoras teriam tido tempo suficiente para se adaptar às novas regras.

"Do ponto de vista técnico, a gente não encontra justificativa técnica para suspensão do prazo de início das novas fases. As tecnologias previstas agora estão disponíveis há mais de uma década em outros países. Além disso, as adaptações estavam previstas desde 2018. Foi tempo o suficiente para fazer essa transição", afirmou.

A coordenadora da Rede Nossa São Paulo (RNSP), Carol Guimarães, diz que uma eventual prorrogação dos prazos poderia ter impactos sobre a saúde da população e sobre as finanças dos municípios.

"Quanto mais tempo demorar, mais poluentes serão emitidos e isso terá um impacto significativo na saúde das pessoas. Além disso, tem um impacto federativo porque essa decisão é tomada em nível federal, mas a maior parte da população é atendida em unidades de saúde custeadas por recursos municipais e estaduais", explicou.

A expectativa, agora, é sobre se o governo irá ceder à pressão das montadoras ou se irá manter as normas previstas. Entidades que fazem parte da Coalizão Respirar, que milita em torno da melhoria da qualidade do ar, avaliam estratégias jurídicas para impedir uma mudança de posição do governo.

A BBC News Brasil enviou questões à Renault e à Anfavea. A montadora francesa disse que não iria se manifestar.

A Anfavea, por meio de nota, disse que mantém "diálogos com autoridades" para mostrar os impactos da pandemia no setor automotivo. Segundo a entidade, a situação foi agravada neste ano pela falta de componentes.

"Desde meados deste ano, esses impactos foram agravados pela falta de componentes, em especial dos itens eletrônicos que dependem de semicondutores, tema é de conhecimento público e notório. A crise global dos semicondutores, que deverá se alongar pelo próximo ano, tem provocado várias paralisações em nossas linhas de produção e demandado grande esforço de planejamento das áreas de Engenharia, Logística, Compras e Manufatura de nossas associadas", diz um trecho da nota enviada pela organização.

Procurado, o Ibama, disse que não possui nenhum parecer técnico sobre os pedidos da Anfavea e da Renault, afirmou que "prestará todo assessoramento numa eventual proposta de mudança da resolução", mas disse que a decisão envolve os ministérios da Economia e do Meio Ambiente.


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