Brasil

‘Um ídolo para eles’: investigação sobre neonazistas revela admiração a autor de massacre em Suzano

Então com 17 anos, ele e o amigo Luiz Henrique de Castro, de 25 anos, invadiram a escola com revólver, uma machadinha, uma besta com dardos, coquetéis molotov e bombas falsas

BBC
Vinícius Lemos - @oviniciuslemos - Da BBC News Brasil em São Paulo
postado em 22/12/2021 17:25
Divulgação MPRJ - Facas, arco e flecha e livros sobre o nazismo foram apreendidos em operação contra grupos de neonazismo -
Divulgação MPRJ - Facas, arco e flecha e livros sobre o nazismo foram apreendidos em operação contra grupos de neonazismo -

Em meio a investigações sobre grupos neonazistas, um nome esteve presente em diferentes momentos: Guilherme Taucci Monteiro.

"Ele é um ídolo para muitos adoradores de movimentos de apologia ao nazismo", diz o promotor Bruno Gaspar, que há meses vem apurando sobre o funcionamento desses grupos no país.

Taucci foi um dos responsáveis pelo massacre que matou dez pessoas na Escola Estadual Raul Brasil, em Suzano, na Grande São Paulo, na manhã de 13 de março de 2019.

Então com 17 anos, ele e o amigo Luiz Henrique de Castro, de 25 anos, invadiram a escola com revólver, uma machadinha, uma besta com dardos, coquetéis molotov e bombas falsas. De acordo com a investigação, eles teriam se inspirado no massacre da escola de Columbine, no Estado americano do Colorado, em 1999, quando dois alunos assassinaram 13 pessoas e feriram 24.

Depois de cerca de 15 minutos da invasão à escola, prestes a serem cercados pela polícia, os jovens executaram a segunda parte do plano. Após atirar contra um policial militar à paisana que mora nas proximidades e ouviu os disparos, Taucci matou Castro e cometeu suicídio.

Conversas por aplicativo de celular e e-mails encontradas pela Polícia Civil apontam que Taucci foi o idealizador do ataque.

Sua mãe, Tatiana, afirmou ao jornal O Globo após o episódio que o filho "sempre gostou dessas coisas de nazismo".

Dias antes do crime, segundo as apurações, Taucci agradeceu pelas dicas que obteve em um fórum extremista na deep web em que há diversos tipos de publicações de ódio. "Nascemos falhos, mas partiremos como heróis", escreveu o rapaz.

Cerca de um ano após a tragédia, uma reportagem da BBC News Brasil mostrou que o túmulo de Taucci recebia admiradores que chegavam a acender velas em sua homenagem.

Na investigação mais recente sobre grupos neonazistas, conta Gaspar, o nome do jovem apareceu estampado em perfis nas redes sociais, alguns com fotos. Segundo o promotor, são homenagens ao criminoso.

"A gente tá falando de uma pessoa que matou alunos, estudantes e funcionários de uma escola e se tornou ídolo para essas pessoas", lamenta Gaspar.

Diante da violência exaltada por esses grupos, Guilherme Taucci ganha status de ídolo.

"Ele é uma espécie de mártir para esses grupos, um exemplo de adoração por ter cometido esse ataque", afirma o promotor.

"É um indício de uma sociedade doente", completa.

Proliferação

Além de exaltar Taucci, a investigação sobre esses grupos também apontou idolatria a Adolf Hitler, compartilhamentos de imagens e textos de cunho racista, homofóbico, antissemita ou nazista. As apurações identificaram que os integrantes falam abertamente sobre a prática de violência contra essas populações.

Esse cenário reforça um alerta que tem sido dado por pesquisadores sobre o tema nos últimos anos: o crescimento de células (pequenos grupos) neonazistas no Brasil.

Segundo um levantamento feito pela antropóloga Adriana Dias, que pesquisa sobre o tema há cerca de 20 anos, o número de células nazistas no país teve um salto nos últimos anos: enquanto em 2015 eram 75, em maio deste ano foram encontradas 530.

Dias afirma que essas células têm o objetivo de distribuir discurso de ódio e defender ideologia contra diversos grupos.

"Pode ser contra mulheres, nordestinos, gays, judeu, negro, pessoa com deficiência, entre outros. O objetivo deles é tornar a violência que eles defendem como um fato natural", explica a pesquisadora.

Pessoas reunidas em frente a escola de Suzano após massacre em 2019
EPA
Ataque à Escola Estadual Raul Brasil, em Suzano, deixou dez mortos em 2019

Operação Bergon

Na última quinta-feira (16/12), alguns adolescentes e adultos suspeitos de participar de grupos neonazistas foram alvos da Operação Bergon, coordenada pelo Ministério Público do Rio de Janeiro (MPRJ), por meio do Grupo de Atuação Especializado no Combate ao Crime Organizado (Gaeco) e pela Polícia Civil do Rio de Janeiro.

Segundo o Gaeco, a investigação começou em razão de descobertas feitas após o ataque a uma creche na cidade de Saudades, oeste de Santa Catarina, em 4 de maio deste ano: três crianças e duas funcionárias foram mortas.

O celular do suspeito do ataque, um rapaz de 18 anos, foi encaminhado à Homeland Security Investigations (HSI), órgão de segurança dos Estados Unidos. O aparelho passou por perícia e posteriormente as informações de inteligência obtidas no telefone foram encaminhadas para as autoridades de Santa Catarina.

A Secretaria de Segurança de Santa Catarina repassou os primeiros dados sobre os grupos neonazistas às autoridades do Rio de Janeiro.

O promotor ressalta que as investigações não confirmaram se o suspeito do massacre na creche, que continua preso, era membro desses grupos. No entanto, por meio da análise do celular dele, explica Gaspar, foi possível chegar de maneira indireta a uma célula neonazista.

"Essa célula não conversou diretamente com o autor do atentado, mas uma pessoa (de Minas Gerais) com quem ele mantinha contato conversava com um membro de uma célula neonazista no Rio de Janeiro", explica o promotor.

Em maio, o suspeito do Rio de Janeiro foi preso.

"Analisamos o celular dele, com a autorização da Justiça, e verificamos vários grupos de WhatsApp em que os integrantes cometiam atos preconceituosos sobre religião, cor e tudo mais."

Esses grupos, que se declaram nazistas e ultranacionalistas, praticam e incitam atos criminosos contra diferentes populações. Eles passaram a ser monitorados pelo MPRJ e pela Polícia Civil do Rio de Janeiro.

As apurações apontaram que esses grupos são compostos por pessoas de diferentes idades, inclusive adolescentes. Os membros compartilham, em redes sociais e aplicativos de mensagens, diversos tipos de conteúdos que divulgam ou instigam atos de discriminação e preconceito. Há, segundo a investigação, até mesmo conversas sobre compra de armas.

"Não tem somente um modus operandi, porque não existe hierarquia. O nazismo defendido por essas células nem sempre vem com a mesma roupagem. Alguns grupos ultranacionalistas defendem o separatismo, enquanto outros são basicamente racistas. Um ponto em comum entre todos é o antissemitismo. Eles realmente têm um ódio gigantesco contra o povo judeu e uma idolatria a Hitler", diz o promotor.

"Esse tipo de apologia é considerado crime. A Constituição estabelece a liberdade de manifestação de pensamento, mas não é algo absoluto. Deixa de ser livre a partir do momento em que existe um abuso da manifestação do pensamento. Quando existe esse abuso através do ódio ou da violência contra populações, a manifestação do pensamento deixa de ser livre. A própria legislação fala isso", declara Gaspar.

Foram cerca de sete meses de investigação até a Operação Bergon, que recebeu esse nome em alusão à freira francesa Denise Bergon, que desafiou o nazismo ao abrigar e salvar dezenas de crianças judias durante a Segunda Guerra.

Apreensões da Polícia em operação
Divulgação MPRJ
Polícia prendeu quatro pessoas na última quinta-feira em cidades do Rio de Janeiro e de São Paulo

Foram cumpridos quatro mandados de prisão na Bergon: dois em cidades do Rio de Janeiro (Campos dos Goytacazes e Valença) e dois em São Paulo (Campinas e Suzano).

Entre os elementos apreendidos nas casas dos suspeitos de integrar os grupos estavam itens como facas, arco e flechas e livros sobre nazismo.

Também foram cumpridos 31 mandados de busca e apreensão nos Estados do Rio de Janeiro, São Paulo, Minas Gerais, Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná e Rio Grande do Norte.

Uma das características dessas células, segundo o Gaeco, é o aliciamento de adolescentes, em muitos casos sem que os pais saibam. Dos mandados de busca e apreensão cumpridos, oito foram em casa de jovens com menos de 18 anos. Nesses casos, os pais demonstraram surpresa ao descobrir que os filhos são suspeitos de envolvimento com grupos neonazistas.

"Isso reforça a necessidade de que os pais acompanhem o que os adolescentes postam nas redes. Os pais não têm conhecimento de tudo o que os filhos fazem nas redes sociais", diz Gaspar.

As autoridades que apuram o caso acreditam que as perícias nos celulares apreendidos na quinta-feira devem indicar outros integrantes desses grupos pelo país.

O MPRJ opta por não comentar sobre possíveis ataques combinados por esses grupos. Já a Polícia Civil do Rio de Janeiro confirmou que um dos suspeitos presos durante a operação confessou que planejava cometer ataque em festas de fim de ano em São Paulo.

O delegado Adriano França, titular da Delegacia da Criança e do Adolescente Vítima (Dcav) do Rio de Janeiro, disse durante coletiva de imprensa que foram apreendidas armas de fogo e bombas caseiras na casa do rapaz.

"O alvo disse que usaria as bombas caseiras em uma festa de final de ano", comentou o delegado, segundo o G1.

Promotor Bruno Gaspar
Divulgação MPRJ
Promotor Bruno Gaspar foi um dos responsáveis por investigar células neonazistas no Ministério Público do Rio de Janeiro

As células nazistas no Brasil

As descobertas feitas pela investigação que deu origem à Operação Bergon acendem um importante alerta no Brasil sobre as células neonazistas, que crescem em todo o mundo e causam preocupação.

Em janeiro deste ano, o secretário-geral da Organização das Nações Unidas (ONU), Antonio Guterres, apontou que grupos de neonazistas, defensores da supremacia branca e os discursos de ódio estão ressurgindo.

Ele afirmou que esses movimentos estão "se organizando e recrutando, além de suas fronteiras" e intensificando os esforços para "negar, distorcer e reescrever a história, incluindo o holocausto". Para conter o avanço dessas células, ele defendeu uma aliança global.

A antropóloga Adriana Dias aponta que o Brasil se tornou um solo fértil para esses grupos.

"O que torna o Brasil fértil atualmente? O processo de desigualdade social. Não é que sem desigualdade não vai haver isso, mas esses grupos não cresceriam assim se não fosse a desigualdade, porque isso faz com que, principalmente, os membros da classe média baixa criem culpados convenientes para o desastre financeiro que enfrentam", diz.

"Esses culpados por eles, em geral, são pessoas depositárias de processos governamentais de prioridade, como deficientes, negros, LGBTQIA+, idosos, entre outros. Essas pessoas (das células neonazistas) pensam que esses indivíduos têm mais direitos, mas isso não é verdade, porque na realidade a sociedade está tentando compensar essas minorias que não têm todos os seus direitos", afirma.

Ela acredita também que temas como guerras e o nazismo têm recebido menos atenção nas salas de aula.

"No Twitter sempre recebo algum tipo de pergunta sobre esses temas. Muitas pessoas acham que a Segunda Guerra Mundial ocorreu só na Alemanha, não têm ideia de que a guerra de Hitler era contra judeus e todo o mundo civilizado", comenta.

A pesquisadora considera que a falta de conhecimento histórico torna os membros dessas células mais fáceis de serem cooptados "por esses discursos (de neonazismo)".

A especialista afirma que discursos do presidente Jair Bolsonaro contra minorias, como a população LGBTQIA+ e indígenas, também podem ser apontados como motivos para o crescimento desses grupos no país.

"É um discurso de ódio contínuo, que funciona como uma fala inflamatória, porque ele tanto permite como legitima esse discurso, torna essas falas imputáveis", afirma Dias.

Por fim, a antropóloga avalia que a Justiça Brasileira não pune de forma correta crimes relacionados ao nazismo.

"Embora seja contra a legislação, poucas vezes o nazismo foi criminalizado, de fato, no Brasil", declara.

Para Dias, a tendência é que essas células continuem crescendo no país. A pesquisadora afirma que faltam medidas essenciais para conter essa expansão no país, como o ensino adequado sobre diversos temas. E ela ressalta que é preciso oferecer acompanhamento psicológico a crianças e adolescentes.

"Esses garotos jovens que entram nesses grupos têm, normalmente, uma questão muito forte de não adaptabilidade social desde muito jovens. No Brasil não há muito essa figura de psiquiatra infantil ou psicólogo. Os adultos alisam muito as crianças, mas não se preocupam com o acompanhamento delas. A saúde mental também envolve crianças", declara.

"As pessoas precisam levar a sério como elas observam os filhos", completa a pesquisadora.

O promotor Bruno Gaspar considera que ainda há uma longa missão no combate a esses grupos no país e avalia que a operação da semana passada foi uma forma de mostrar que as autoridades estão atentas ao tema.

"O Ministério Público continuará intransigente na defesa da liberdade de expressão, sempre na medida da lei e com respeito a quem quer que seja", diz o promotor.

"É inconcebível qualquer tipo de discriminação em 2021. Ver essas pessoas idolatrando Hitler e o movimento nazista, responsável por milhões de mortes, é assustador", declara Gaspar.

*Colaborou André Vargas, de São Paulo


Sabia que a BBC está também no Telegram? Inscreva-se no canal.

Já assistiu aos nossos novos vídeos no YouTube? Inscreva-se no nosso canal!

Notícias pelo celular

Receba direto no celular as notícias mais recentes publicadas pelo Correio Braziliense. É de graça. Clique aqui e participe da comunidade do Correio, uma das inovações lançadas pelo WhatsApp.


Dê a sua opinião

O Correio tem um espaço na edição impressa para publicar a opinião dos leitores. As mensagens devem ter, no máximo, 10 linhas e incluir nome, endereço e telefone para o e-mail sredat.df@dabr.com.br.

Footer BBC