Não é a primeira vez que a rejeição a imunizantes e vacinas divide a Europa.
No século 18, a rainha portuguesa D. Maria 1ª alegou motivos religiosos para vetar a inoculação de seus filhos contra a varíola, em um episódio de grandes consequências tanto para a sua vida quanto para a trajetória de Portugal e do Brasil.
O declínio mental que levou a mãe de D. João 6º e avó de D. Pedro 1º a ficar marcada na história como "A Louca" foi influenciado pela morte do filho José, herdeiro da coroa portuguesa. Dois meses depois, ela ainda perderia pela doença - em um intervalo de semanas - a filha, o genro e o neto.
A varíola foi declarada erradicada em 1980, após amplas campanhas de vacinação, mas representou no passado um dos grandes temores no mundo.
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O continente europeu registrou uma média de 400 mil mortes ao ano no século 18, e um terço dos sobreviventes ficava cego como sequela. Os pacientes também enfrentavam terríveis erupções cutâneas e desenvolviam pústulas que desfiguravam a pele.
O vírus circulou por milhares de anos, tempo suficiente para que culturas da Ásia e da África observassem que todos os sobreviventes se tornavam imunes a novas infecções.
Assim, a relação entre o contato com formas brandas dos agentes infecciosos e a criação de defesas no corpo fez surgir a variolação, ou inoculação, que consistia em usar o pus expelido por doentes e introduzir em pessoas saudáveis.
Na China, triturava-se as crostas secas da pele dos infectados, e o pó era então soprado no nariz. São as predecessoras das atuais vacinas.
A variolação chegou à Europa no começo do século 18, através dos turcos, e ganhou força entre famílias reais no continente.
Uma aristocrata inglesa, Lady Montague, foi uma das grandes promotoras da técnica. Ela havia sido vítima da varíola, ficou com marcas profundas no rosto e buscou a inoculação de seus filhos quando viveu em Istambul em 1718.
O risco de morte para quem se submetia à variolação era de até 3%, segundo um artigo de Stefan Riedel, da Escola de Medicina de Harvard. Ainda assim, representava reduzir em dez vezes a chance de morrer por contrair a doença.
"O método de variolação era, sim, razoavelmente disseminado e aceito, mas não havia um consenso científico estabelecido. Era um método empírico, sem protocolos bem delineados. Estudos de segurança e eficácia começaram mais sistematicamente no começo do século 19 para a vacinação. Os atuais formatos de testes de eficácia começaram apenas no começo do século 20", diz Peter Schulz, professor da Faculdade de Ciências Aplicadas da Unicamp e divulgador científico.
Foi nos últimos anos do século 18, em 1796, que o inglês Edward Jenner produziria uma vacina contra a varíola: a primeira vacina da história.
A escritora e jornalista portuguesa Isabel Stilwell, autora do romance histórico D. Maria I: Uma Rainha Atormentada por um Segredo que a Levou à Loucura, conta que o rei inglês George 3º, "que tinha uma afeição particular pela rainha D. Maria 1ª e era um apologista fanático da variolação", fez um apelo para que inoculassem o príncipe D. José. Conselhos semelhantes vieram da corte austríaca.
D. Maria vetou o procedimento, relata Stilwell, "temendo os riscos e convencida de que nos países do sul (da Europa) a varíola era sempre mais benigna".
Religiosidade
Outro fator historicamente considerado na recusa da variolação foi a extrema religiosidade de D. Maria 1ª. Ela via o método como "contrário à vontade de Deus".
"A religiosidade de D. Maria é a religiosidade de Portugal", diz a historiadora Mary del Priore, autora de D. Maria I: As Perdas e as Glórias da Rainha que Entrou para a História como 'A Louca'.
"Se você fechar os olhos e imaginar Lisboa no século 18, você vai encontrar uma cidade onde procissões percorriam as ruas diariamente, onde acreditava-se em aparições da Virgem Maria, do Menino Jesus. Onde acreditava-se que o demônio podia estar presente, que o demônio podia ter invadido um convento, um mosteiro. Essas crenças populares estavam muito vivas no final do século."
Del Priore diz que "Portugal, ao contrário dos países do norte da Europa e mesmo da França e Itália, era um reino profundamente comprometido com a Igreja Católica. Portugal vai cultivar mais a religião do que a ciência, dada a sua população rural, agrícola, dada a pobreza do reino".
Por outro lado, a historiadora lembra que foi sob o reinado de D. Maria que foram fundadas a Academia Real das Ciências de Lisboa e a Real Biblioteca Pública da Corte.
O espírito lusitano de devoção à época seria aproveitado politicamente.
"D. Maria percorre essas procissões com o povo, ela se mistura ao povo nas festas religiosas, ela foi realmente a rainha adorada pelo povo português", conta.
Isabel Stilwell credita a resistência de D. Maria 1ª à variolação mais à "ansiedade crônica e à progressiva dificuldade em tomar decisões", mas diz que "é verdade que (a rainha) sofria a influência da Priora da Estrela (freira carmelita e sua confidente), que tendia a desvalorizar os médicos".
Um primogênito esperado
O nascimento de D. José foi bastante aguardado. Promessas foram feitas para que nascesse um menino, como a construção da Basílica da Estrela, em Lisboa.
D. Maria era a mais velha entre 4 irmãs e, apesar de previsto na lei real, havia diversas forças contrárias a uma mulher no comando do país.
Garantir um primogênito homem era, segundo Mary del Priore, "um passaporte para D. Maria não só garantir a descendência, o trono para a Casa de Bragança, mas também uma revanche pessoal com o desprezo pelo qual ela foi tratada pelo pai a vida toda".
José nasceu em 1761, ganhou o título de Príncipe da Beira e entrava no caminho para se tornar algum dia rei de Portugal.
O próprio avô chegou a participar de uma trama liderada pelo Marquês de Pombal para que o trono fosse passado direto para o neto, atropelando a linha sucessória, mas isso não se concretizou.
Quando tinha 27 anos, o herdeiro da coroa fez uma viagem à cidade portuguesa de Caldas da Rainha.
Duas semanas depois, já de volta a Lisboa, fortes sintomas começaram a aparecer - febres, dores musculares, dificuldade para respirar e manchas vermelhas. No início pensava-se que era uma forma branda da varíola, mas o cenário logo se complicou.
Del Priore conta em seu livro que "Maria passou a ficar no palácio, rezando. As orações de nada adiantaram. O jovem príncipe fechou os olhos no dia 11 de setembro, às quatro e meia da tarde, depois de se confessar e receber a extrema-unção".
Abalos em série
A morte de D. José foi a primeira de uma série em um curto intervalo que abalou profundamente a rainha. Dois anos antes, ela já havia perdido o marido (que também era seu tio) e companheiro fiel, D. Pedro 3º.
Menos de dois meses depois do funeral de D. José, morria na Espanha sua filha Mariana Vitória - também de varíola, aos 19 anos. Além dela, o genro e o neto sucumbiram à mesma doença no espaço de semanas - todos os eventos ocorreram em novembro. Em meados do mês seguinte falecia o rei da Espanha, Carlos 3º, seu primo e conselheiro político.
No mesmo período houve também a perda do padre confessor de D. Maria, visto como um pilar de sua vida, o frei Inácio de São Caetano.
Em três meses a monarca vivenciava seis lutos, quatro por varíola.
"A morte do filho vai ser realmente um dos muitos fatores que vai levar D. Maria à profunda depressão da qual ela será vítima. Não havia remédios na época, não havia diagnósticos sobre a melancolia que hoje chamamos de depressão. Não havia medicamentos", diz Del Priore.
Stilwell afirma que já havia sinais anteriores desse quadro: "Graças à publicação das cartas da Priora do Convento da Estrela para D. Maria, publicadas pela historiadora Alice Lázaro, ficamos a saber sem sombra de dúvida que muito antes de ter chegado ao trono ela já sofria de um estado mental delicado. Referem-se a ansiedade, pânico, tristeza e mesmo 'medo de ensandecer'".
Rumos da história mudam
Com a morte de José, o trono português iria para o filho João, futuro D. João 6º. O abalo mental que dominava a rainha antecipou a chegada dele ao poder, na década de 1790, como regente. Dessa forma foi alterada substancialmente a história de Portugal e do Brasil: D. Pedro, filho de D. João, seria o primeiro imperador brasileiro.
As descrições sobre o estado de D. Maria nessa época passavam por "(a rainha) parece por vezes estar morta e não consegue ser animada" e "delírio constante". Um viajante inglês citava conversas "de natureza pouco casta".
A população começa a acreditar que a rainha havia sido envenenada.
D. Maria partiu com a família real para o Brasil em 1807. A fuga desbaratada com o avanço de forças de Napoleão Bonaparte em direção a Lisboa teve uma passagem de fama anedótica protagonizada pela rainha. Ela teria dito ao cocheiro que seguia para o porto: "Não corram tanto. Vão pensar que estamos a fugir!". A corte chegou ao país em 1808.
No Brasil, em decisão consonante com sua religiosidade, a rainha se instala com seu séquito no Convento do Carmo, no Rio.
D. Maria é constantemente conduzida pelas suas damas de companhia nos passeios pela cidade, fato ligado ao surgimento da expressão brasileira "maria-vai-com-as-outras".
Em março de 1816, D. Maria 1ª morre no Brasil, aos 81 anos, em consequência de "extrema debilidade". Seus restos mortais foram abrigados depois em um mausoléu na Basílica da Estrela, a igreja que mandou erguer.
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