Saúde diz que kit covid é eficaz, mas vacina, não

Em nota técnica, ministério classifica hidroxicloroquina como eficiente para tratar a covid-19 e que imunizantes não demonstram a mesma efetividade, na contramão de uma série de estudos pelo mundo. Anvisa e especialistas repudiam

Tainá Andrade
postado em 23/01/2022 00:01
 (crédito: Tony Winston/MS)
(crédito: Tony Winston/MS)

O Ministério da Saúde vetou, por meio de uma nota técnica, as diretrizes que contraindicam o uso do chamado kit covid no Sistema Único de Saúde (SUS) e classificou a hidroxicloroquina como eficaz para o tratamento contra a covid-19. De acordo com a nota assinada apenas pelo secretário de Ciência, Tecnologia, Inovação e Insumos Estratégicos em Saúde da pasta, Hélio Angotti Neto, as vacinas não demonstram a mesma efetividade, contrariando uma série de estudos e orientações sanitárias pelo mundo.

A decisão levantou críticas da comunidade científica, em especial dos membros da Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias ao Sistema Único de Saúde (SUS), a Conitec, responsável pela elaboração das diretrizes ao longo de quatro meses. Aprovado por sete votos a seis na comissão, o documento sofreu impedimentos desde esse momento para ser publicado. Isso porque o seu texto vai contra o principal elemento das teorias negacionistas levantadas por Jair Bolsonaro (PL) e apoiadores.

O veto de Angotti, na prática, deixa a escolha sobre o tratamento a ser aplicado nos pacientes de covid-19 para os médicos. A nota técnica, além de barrar as diretrizes que contraindicam o kit covid no tratamento ambulatorial e hospitalar da doença, mantém o país sem uma recomendação oficial de como tratar pacientes de covid com quase dois anos de pandemia.

No documento, o secretário apresentou uma tabela colocando a hidroxicloroquina, medicamento com ineficácia comprovada contra o novo coronavírus, em oposição às vacinas, que já se demonstraram eficientes para reduzir os casos graves e as mortes pela doença no Brasil e em outros países. Na justificativa usada pelo secretário para desaprovar o estudo, o secretário acusou os cientistas de "possível viés na seleção de estudos e diretrizes", pediu pelo "respeito à autonomia profissional" e a "necessidade de não se perder a oportunidade de salvar vidas". Entre as distorções nos argumentos, Angotti utilizou uma tabela para comparar a eficiência da hidroxicloroquina com as vacinas. Ele afirmou que o fármaco é barato, não tem estudos "financiados pela indústria", em compensação a vacina é cara, os estudos são bancados pela indústria e ela é recomendada pelas sociedades médicas, que desaprovam o primeiro produto.

Em nota, o Ministério da Saúde informou que a secretaria não pode ser mal interpretada, já que o texto do secretário "não traduz o real contexto". A informação de que a cloroquina é segura para tratamento da covid-19 e a contestação da segurança das vacinas não são compactuadas pela pasta e foram "retiradas erroneamente de uma manifestação de nota técnica". "A interpretação de que ela afirma existência de evidências para o medicamento cloroquina e não existência de evidências para vacinas é errada e descontextualizada", ressaltou.

O documento vetado trazia uma série de comprovações científicas recolhidas durante os dois anos de pandemia, que foram estudadas pelos técnicos, que concluíam que os medicamentos do tratamento precoce realmente não tinham eficácia. Apontava também métodos de controle da dor e sedação de pacientes em ventilação mecânica e orientações para assistência hemodinâmica e medicamentos vasoativos. Até então, o Ministério da Saúde havia publicado apenas uma diretriz, assinada pela Conitec, em junho de 2021, sobre uso de oxigênio, intubação orotraqueal e ventilação mecânica de pacientes.

A nota técnica de Angotti provocou críticas nas redes sociais. O líder da oposição no Senado, Randolfe Rodrigues (Rede-AP), anunciou que vai acionar o Supremo Tribunal Federal (STF) para barrar o incentivo à hidroxicloroquina, em oposição à vacinação.

Absurdo

A comunidade científica foi unânime no repúdio ao posicionamento do secretário. Alexandre Naime Barbosa, vice-presidente da Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI) e professor da Universidade Estadual Paulista (Unesp), que participou da elaboração dos estudos, junto com as outras entidades, comentou que esse foi o primeiro episódio na história em que o Ministério da Saúde desaprovou uma decisão da Conitec. "O risco é que os médicos que estão na ponta sejam mal orientados pela instituição que deveria primar pelo cuidado. Quem mais deveria informar de forma correta está fazendo o contrário. Nunca um secretário da Ciência, Tecnologia, Inovação e Insumos Estratégicos foi contra uma decisão da plenária da Conitec, isso mostra as intenções dele".

Para Naime, o principal "absurdo" foi a tabela usada na contra-argumentação de Angotti. "Causa indignação por conta de uma repetição no discurso falacioso, que leva à desinformação, anticiência que não tem absolutamente nada de técnico. Mas a comunidade está empenhada na luta contra", garantiu. Naime informou que a SBI está preparando um recurso para ser levado diretamente ao ministro Marcelo Queiroga. Assinam também o documento, até o momento, a Associação de Medicina Intensiva Brasileira (Amib), a Sociedade Brasileira de Pneumologia e Tisiologia (SBPT) e a Associação Médica Brasileira (AMB). A ideia é tentar reverter o veto sem passar pelo secretário.

A diretora da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) responsável pela área que analisa e aprova vacinas, Meiruze Freitas, declarou que é "inadmissível" o episódio e, com isso, classificou que a ciência brasileira tomou um rumo na "contramão do mundo". "Todas as vacinas autorizadas no Brasil passaram pelos requisitos técnicos mais elevados no campo dos estudos clínicos randomizados (fase I, II e III) e da regulação sanitária. É preciso que todos estejam unidos na mesma direção, ou seja, salvar vidas", disse. Ela referiu-se à justificativa usada pelo secretário para desqualificar as vacinas.

Jamal Suleiman, médico infectologista do Instituto Emílio Ribas, contou que essa semana, atendeu, em seu plantão, uma senhora, com obesidade em grau 3, que estava com insuficiência respiratória e só estava tomando ivermectina. De acordo com ele, ao ser levada para intubação, ela gritava 'Viva Bolsonaro'. "É uma situação estaparfúdia. Eu não cuido de pessoas com base nos votos que deram para a, b ou c, eu cuido de pessoas que precisam do meu cuidado. Eu vi essa situação, não me contaram. Isso serve para os negacionistas, as pessoas vão se sentir seguras porque estão tomando o tratamento precoce e correu o risco de evoluir para uma situação grave da doença. A gente vai perder pessoas", alertou.

O médico também ressaltou que o Ministério da Saúde tem a prerrogativa de estabelecer protocolos clínicos e terapêuticos para várias doenças infecciosas e somos exemplos mundial nisso. Então, para Suleiman é "vergonhosa" a situação, além de comprometer o dinheiro público. "Os protocolos para outras doenças estão bem estabelecidos, eles levam em consideração a ciência, o que seria o óbvio, para covid. Nesse retrocesso, nós vamos pagar, porque quando se estabelece que deve seguir essas normas, o governo passa a fornecer os subsídios para que isso ocorra. Quando retrocede para cloroquina, invermectina e abre essa brecha para fazer uso desse tipo de medicação e o estado vai ter que fornecer. Eu ainda estou tentando entender quem vai ganhar com isso, com certeza não é o paciente", analisou. (Com Agência Estado)

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