O cérebro humano é um enorme mistério. E a mente também. A relação entre eles é intrínseca, como afirmou o psiquiatra americano Glen Owens Gabbard. Eles não são entidades separadas, mas “a mente é a atividade do cérebro”. O cérebro é o lado físico, e a mente, o abstrato. E a harmonia entre eles é grande passo para a saúde mental. Mas ambos são tão elaborados, desafiadores, têm tantas camadas que, por mais que sejam desvendados pela ciência não são completamente dominados.
Na verdade, quanto mais se sabe, mais se tem a descobrir. Intrigam cientistas, fascinam e estão no controle das dores e delícias da vida. E quando se trata da saúde mental, é necessário que a prática psicológica e psicanalítica se reinvente, acompanhe as transformações humanas e busque mudanças de tratamento e acolhimento, tanto para os especialistas quanto para os pacientes, para que o sofrimento cesse e o bem-estar, a qualidade de vida e a saúde clínica e mental prevaleçam.
Uma das descobertas mais recentes, de 2003, é o brainspotting, nome que nasce da junção das palavras cérebro (brain) e ponto (spot), um método de tratamento para a saúde mental que a partir da posição ocular é possível acessar um evento traumático específico na vida de uma pessoa e criar condições para que o cérebro processe e organize essa experiência.
A frase “Onde olhamos afeta o que sentimos”, de David Grand, psicoterapeuta americano, define bem a terapia criada por ele, que é reconhecido internacionalmente no campo do trauma emocional.
O brainspotting tem relação com outra terapia, a EMDR (Dessensibilização e Reprocessamento por Movimentos Oculares), que Grand destaca em seu livro “EMDR à máxima velocidade: O poder do EMDR” (“Emotional healing at warp speed: The power of EMDR”).
Os resultados alcançados por Grand diante de traumas também estão registrados no documentário que dirigiu, “Come hell or high water”, sobre os sobreviventes dos ataques terroristas às torres do World Trade Center de Nova York, que ele levou a Nova Orleans depois do desastre do Furacão Katrina.
No documentário, David Grand e três de seus pacientes – a mãe de uma vítima do 911, um sobrevivente de um bombardeio e um homem com dor crônica – vão de NY para Nova Orleans após o furacão Katrina. Eles encontram sobreviventes e começam uma jornada de cura juntos.
Grand, aliás, faz parte de uma equipe de pesquisa que usa tomografias tipo fMRI para estudar os efeitos do trauma sobre o cérebro. Essas imagens magnéticas ilustram as mudanças na fisiologia do cérebro de sobreviventes a um trauma, resultando em diferentes modalidades de tratamento.
O brainspotting está se consolidando como uma técnica válida e eficaz para tratamento de transtornos psicológicos. Ela é bem semelhante ao processo neuropsicológico de uma meditação, ativando áreas específicas do cérebro que permitem a passagem de conteúdos inconscientes à consciência de forma a não julgar o que vem à tona. Especialistas garantem que ela aborda rapidamente questões que a terapia verbal pode levar anos para curar.
Milsane de Paula, de 49 anos, publicitária, cozinheira empreendedora, lembra que ao procurar um processo terapêutico foi apresentada ao brainspotting. “Sou empreendedora e durante a pandemia abri dois restaurantes que iam muito bem até que vieram as chuvas, então tudo ruiu. Fiquei perdida, desanimada, embora tivesse que continuar, porque investi todas as reservas que tinha nesse empreendimento.” Passando por um processo de capacitação, a mentora dela sugeriu terapia e ela aceitou fazer, até para resolver sua relação com o dinheiro, que sempre foi uma coisa confusa e complexa.
“Adoro meu trabalho, sempre me entreguei a ele, pelo trabalho, pela realização, pela satisfação de fazer perfeito. Mas sempre tive problemas com as questões de remuneração, de movimentação de valores. Nunca foi tranquilo cobrar pelo meu trabalho. Sempre fiz terapia e senti que esse método, se é que posso chamar assim, foi muito mais eficaz para minhas dores. Em apenas uma sessão fiz descobertas impressionantes sobre mim. E isso foi libertador, virando chaves fundamentais que possibilitaram uma mudança de pensamento.”
Milsane de Paula revela que o brainspotting a fez enxergar claramente onde estava o cerne do problema. “Sempre busquei por ele e associava a fatores aleatórios, que embora também sejam problemas, não tinham relação com a construção do meu comportamento, por exemplo, de autossabotagem. Ainda estou em processo e espero evoluir com ele, porque de fato está sendo libertador.”
Quem também destaca os benefícios do brainspotting é Pedro Henrique Paganella, de 20, jogador das categorias de base do Clube Atlético Metropolitano, de Blumenau (SC), e estudante de fisioterapia. Ele conheceu o brainspotting por meio da leitura do livro “O cérebro no esporte: Superando os bloqueios e a ansiedade de performance.
“Após fazer a leitura, encontrei o e-mail do autor e criador do brainspotting, David Grand. Resolvi contatá-lo e agradecê-lo pelo livro. Após isso, recebi o contato de uma treinadora do método, que me perguntou sobre o meu envolvimento no esporte. Expliquei que não havia condições financeiras para arcar com o tratamento, mas estava fazendo por conta própria, de acordo com o livro. A partir daí acabamos marcando uma sessão e nos conhecendo, e esse foi um dos passos essenciais para o meu crescimento profissional e pessoal.”
Pedro Henrique Paganella revela que o que o levou a procurar soluções para os seus bloqueios foi, principalmente, por estar performando mal em campo, tendo um rendimento ruim perto do que sabia que era capaz. E, então, ao conhecer a ferramenta brainspotting, resolveu se aprofundar e usá-la como tratamento.
“Ainda mais que achei as raízes responsáveis pelo meu mau rendimento em campo. Já tive acompanhamento psicológico quando tinha cerca de 7 anos, mas não surtiu efeito, tanto que minha mãe resolveu parar de me levar ao psicólogo. Já o brainspotting, realmente, tem o poder de digerir os traumas, tornando-os experiências normais e não mais traumáticas, fazendo com que os resultados tanto no esporte quanto na vida tivessem uma mudança notável, ao ponto de não gerar tensões e bloqueios. Mas claro que tudo isso leva tempo e disciplina, mas é eficaz.”
Pedro Henrique conta que ainda está em fase de tratamento, mas garante que muitos dos bloqueios e traumas gerados no esporte estão curados hoje, e alguns ainda em processo de cura. “E sempre que for necessário vou retomar o tratamento, será minha primeira escolha.”
E a estudante indiana Nabeeha Amrin, de 20, que fez intercâmbio no Brasil há alguns anos, teve contato com o brainspotting porque tinha medo de cachorro e a família que a recebeu no Brasil tinha um animal. Por isso, ela precisou fazer a terapia para conviver melhor com todos na nova casa.
“A família que me recebeu falou sobre o brainspotting e pensei que poderia ser algo bom para tentar. Foi diferente dos tratamentos psicológicos que eu já tinha visto, estava tendo fobia de animais, especialmente cachorros. O resultado foi ótimo. Ele me ajudou a superar meu medo de tocar em cachorros e ficar mais próxima deles. Foi diferente porque não foi só minha psicóloga me pedindo para superar o medo e ir lá ver se realmente funcionou. Já encerrei o processo, mas faria novamente se precisasse e indico para as pessoas que conheço e estão passando pelo mesmo problema.”
COMETA E A CAUDA
Os depoimentos confirmam a segurança que cada um deles encontrou no brainspotting na busca de uma melhor qualidade de vida. Priscila Fuzikawa, mestre em saúde pública pela UFMG – atua há 29 anos em consultório e no SUS –, treinadora de brainspotting e atual presidente da Associação Brasileira de Brainspotting, destaca que, diferentemente da maioria das abordagens, não é o terapeuta quem determina o que vai acontecer nem o que vai ser feito.
O terapeuta, durante todo o atendimento, fica sintonizado com o processo do cliente e o acompanha. É como se o cliente fosse a cabeça do cometa, e o terapeuta a cauda, explica.
Priscila Fuzikawa pontua que com o brainspotting também é possível aprimorar a habilidade de falar um idioma com mais desenvoltura ou aprimorar a apresentação de uma obra musical: “A própria terapia foi descoberta dessa forma, quando David Grand tratava de uma atleta que não conseguia fazer determinado salto”, revela a terapeuta. O brainspotting é também indicado para diversas questões pontuais como tabagismo, fibromialgia e medo de dirigir.
E com a terapia é possível trabalhar eventos de que a pessoa não se lembra de forma factual, como memórias de antes dos dois anos de idade, quando ainda não temos a capacidade de formar memórias declarativas. “Está tudo registrado no cérebro, mas é outro sistema de memórias. Dessa forma, se a pessoa viveu eventos traumáticos nessa fase pré-verbal, essas experiências podem ser trabalhadas com o brainspotting, uma vez que estão registradas em seu sistema.”
No Brasil, somente psicólogos, estudantes de psicologia do último ano, e médicos psiquiatras ou com formação em psicoterapia podem tornar-se brainspotters (profissional formado em brainspotting). Depois da Fase 1 do treinamento, com carga horária de 21 horas com teoria, demonstração e prática, o terapeuta já pode utilizar o brainspotting em sua prática. A formação completa inclui quatro fases, além de supervisão e cursos avançados.
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