
"Estamos vivendo retrocessos gravíssimos na questão ambiental, conduzidos pelo Executivo e pelo Legislativo." A constatação da bióloga Mercedes Bustamante, professora titular da Universidade de Brasília (UnB), membro da Academia Brasileira de Ciências e atualmente uma das principais referências no bioma cerrado.
Ela explica que tais retrocessos impactam sobretudo no cerrado, bioma que conta com a menor extensão de unidades de conservação e está, portanto, menos protegido nos marcos regulatórios. "Estamos vendo recrudescimento do desmatamento e da degradação."
Os impactos dessas políticas retrógradas já podem ser vistos e tendem a piorar. Segundo Mercedes, a nível local, importantes unidades de conservação no DF têm enfrentado pressões de degradação. E são elas que contribuem para a absorção de carbono, combatendo o aquecimento global, conservam água para as cidades e amenizam a temperatura e a baixa umidade relativa.
"Brasília é uma cidade que precisa se preparar para a mudança do clima e o aumento de eventos extremos de precipitação e temperatura. A manutenção das áreas verdes e de cerrado, redução da impermeabilização dos solos, o cuidado com as populações mais vulneráveis são componentes importantes de um plano de adaptação", diz nesta entrevista ao Correio.
Ela chama à responsabilidade o setor privado, em particular o agronegócio, que tem um papel muito importante para conservar e restaurar o cerrado. "Podemos intensificar o uso da terra de forma sustentável e aumentar a eficiência dos processos produtivos. A conservação em nível da propriedade pode ir além das demandas legais sem comprometimento da produção de alimentos", explica.
Mercedes destaca ainda que "segurança alimentar é mais do que produzir", e, sim, incluir qualidade e saúde do alimento e do meio ambiente, além da distribuição justa. "É um contrassenso ser uma potência exportadora de commodities agrícolas com tantas pessoas em situação de fome e insegurança alimentar."
Por que o cerrado é considerado um bioma de segunda categoria, sendo, para muitos, o "patinho feio" dos ecossistemas brasileiros?
Tendemos a associar o valor dos biomas à cobertura florestal. Ou seja, florestas densas são vistas como ambientes mais ricos e como prioritários para conservação. Dessa forma, a necessidade de conservação dos biomas não florestais acaba sendo menos considerada. O processo de ocupação colonial do cerrado também priorizou os recursos minerais e, posteriormente, o incentivo foi para o uso agropecuário, desconsiderando outras possibilidades de economia com base nos ricos recursos biológicos do bioma.
Amazônia e Pantanal são muito comentados quando se fala de evitar o aquecimento global. Como fica o cerrado?
O cerrado já está sendo impactados pelo mudança do clima em interação com as mudanças locais de uso do solo. Já observamos aumento da temperatura superficial e redução da umidade. As projeções compiladas pelo último relatório do IPCC apontam para temperaturas mais altas, atraso do período chuvoso e maior ocorrência de incêndios. Já em 2022 estão quebrando recordes de ocorrência de queimadas.
Como vê o cuidado com o cerrado a partir do nosso quintal, o Plano Piloto?
Brasília é uma cidade que precisa se preparar para a mudança do clima e o aumento de eventos extremos de precipitação e temperatura. A manutenção das áreas verdes e de cerrado, redução da impermeabilização dos solos, o cuidado com as populações mais vulneráveis são componentes importantes de um plano de adaptação. Adicionalmente, temos importantes unidades de conservação no DF que vêm enfrentando pressões de degradação, o que precisa ser revertido. Tais unidades de conservação contribuem para a absorção de carbono, combatendo o aquecimento global, conservam água para as cidades e amenizam a temperatura e a baixa umidade relativa.
Já superamos a ignorância e o preconceito contra o cerrado? Qual a singularidade da beleza do cerrado?
A ciência tem avançado muito no conhecimento sobre o cerrado e as instituições de pesquisa do DF têm conduzido importantes pesquisas. Precisamos seguir com o financiamento consistente da ciência para gerar as soluções que necessitamos para as próximas décadas que demandarão muitos ajustes da sociedade e da economia.
O que é urgente fazer para salvar o cerrado?
Temos três frentes importantes: parar o desmatamento, restaurar os passivos ambientais (áreas degradadas) e incentivar o planejamento territorial e práticas sustentáveis com o olhar para as demandas do futuro e não com a visão das décadas passadas que já não servem como exemplo dos desafios que vamos enfrentar.
A educação sobre o cerrado nas escolas é satisfatória? Como poderia ser melhorada?
De forma geral, precisamos levar mais informações sobre nossos biomas para as escolas e para os livros didáticos. Hoje, há iniciativas muito significativas no âmbito da universidade para incorporar isso na formação de novos professores e para produzir novas ferramentas que, de forma lúdica, apresentem o cerrado às nossas crianças e jovens.
Como avalia o nível de consciência ambiental da classe política e qual o impacto dessa consciência nas decisões sobre o cerrado?
Infelizmente, estamos vivenciando retrocessos gravíssimos na conservação ambiental, tanto conduzidos pelo Executivo como pelo Legislativo. Como o Cerrado conta com menor extensão de unidades de conservação e está menos protegidos nos marcos regulatórios, estamos vendo recrudescimento do desmatamento e da degradação.
O futuro, se houver futuro, será de uma economia verde. Como o agronegócio terá de se adaptar ou se reinventar para entrar em sintonia com esse novo tempo?
Não há dúvida que o setor precisará incorporar novas práticas em consonância com as demandas de sustentabilidade e para a própria sobrevivência econômica pois é um setor altamente dependente dos recursos naturais. A conservação é parceira da produção agropecuária.
O agronegócio cresceu sacrificando o segundo maior bioma brasileiro. O que se pode fazer ainda para salvar o pouco que restou? Como conciliar o papel do cerrado como grande produtor de alimentos e ao mesmo tempo proteger as áreas ainda preservadas?
O setor privado, em particular o agronegócio, tem um papel muito importante para conservar e restaurar o cerrado. Podemos intensificar o uso da terra de forma sustentável e aumentar a eficiência dos processos produtivos. A conservação, em nível da propriedade, pode ir além das demandas legais sem comprometimento da produção de alimentos. É preciso também destacar que segurança alimentar é mais do que produzir. Deve incluir qualidade e saúde do alimento e do meio ambiente e sua distribuição justa. É um contrassenso ser uma potência exportadora de commodities agrícolas com tantas pessoas em situação de fome e insegurança alimentar.
A Amazônia já definiu determinados regramentos voluntários e o cerrado tem algum inventário que digam respeitam a quanto emite de gás do efeito estufa?
As emissões do cerrado são contabilizadas pelo Ministério de Ciência, Tecnologia e Inovações, que é responsável pela elaboração do Inventário Nacional de Emissões enviado à Convenção Quadro da Nações Unidas para Mudança do Clima. Temos também iniciativas da sociedade civil que monitoram as emissões dos biomas brasileiros, incluindo o cerrado. As estimativas convergem ao indicar a grande contribuição do desmatamento para as emissões do Brasil.
Acredita que parte dos produtores já começa a entender a importância de proteger o cerrado, sabendo que rios estão secando, nascentes destruídas, espécies ameaçadas de extinção?
Há produtores que estão empenhados em conduzir suas atividades com base no respeito aos limites naturais e contribuindo para que os ecossistemas continuem provendo água, polinizadores, controle de pragas e regulação climática. Precisamos dar mais destaque a esses novos modelos e mostrar que podem ser aplicados em escala.
Bruno Pereira e Dom Phillips morreram vítimas do crime organizado na Amazônia. O que é preciso fazer, além de levar à Justiça os responsáveis pelo duplo assassinato?
A justiça é um imperativo nesse caso e também nos outros assassinatos de servidores públicos e defensores ambientais. Mas precisamos também desmontar as estruturas que estão sustentando a violência e o crime organizado na Amazônia.
O que se desenha para o meio ambiente em caso de vitória de Bolsonaro? As propostas de Lula para o meio ambiente são satisfatórias?
A eleição de 2022 pode representar um ponto importante de inflexão das políticas ambientais. Claramente, o desmonte dos regramentos e das estruturas de proteção tem gerado impactos para a população brasileira e para a percepção internacional do país. Isso precisa urgentemente ser revertido. Eu espero que todos os candidatos considerem a questão socioambiental como central para a retomada do desenvolvimento do país.
Em depoimento no Senado, o líder indígena Jader Marubo fez duras críticas à Funai. E disse que até o momento não há proteção para indigenistas e servidores. A Funai é vítima ou cúmplice dessa situação?
Aqui é importante separar a direção, que é temporária e que não tem cumprido com sua missão, e a instituição, formada por seu corpo de servidores de carreira que tem enfrentado pressões dos mais diversos tipos e níveis ao tentar atuar de acordo com suas funções. Precisamos que a Funai volte aos trilhos do cumprimento de sua missão pública e de proteção dos povos indígenas.
O caso Dom e Bruno cairá no esquecimento?
Eu espero fortemente que não e nós vamos seguir lembrando. A investigação e a justiça precisam ser rápidas e certeiras. A sociedade brasileira espera respostas e um indicativo de que defensores ambientais, indigenistas e jornalistas não devem viver sob ameaça no país.
A oposição conseguiu obstruir, momentaneamente, o PL do Veneno. O que pensa do assunto?
O tema tem consequências muito profundas para a saúde ambiental e humana e que podem permanecer conosco por muito tempo. Há necessidade de um debate amplo, bem informado e transparente. Novamente, a ciência pode fornecer importantes subsídios e é importante que os espaços de discussão com a sociedade civil sejam criados e respeitados.
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