Entrevista | Maurício Andrade

"Não há espaço para ser neutro", diz Bispo da Diocese Anglicana de Brasília

Com uma agenda progressista, chefe da denominação religiosa defende engajamento político dos cristãos. Segundo ele, o Evangelho preconiza ação do fiel. Sobre o casamento de pessoas do mesmo sexo, afirma: "Não devemos ter medo do amor"

Correio Braziliense
postado em 29/08/2022 05:59 / atualizado em 30/08/2022 16:14
 (crédito: Diocese Anglicana de Brasília)
(crédito: Diocese Anglicana de Brasília)

Diferentemente de outras denominações cristãs, a Igreja Anglicana do Brasil tem levantado pautas políticas notoriamente progressistas, como o casamento homoafetivo, liberado pela igreja em 2018, e a questão envolvendo a demarcação de terras indígenas e reforma agrária. Um dos instrumentos utilizados pela Diocese Anglicana de Brasília é o podcast "Radar Direitos Humanos", no qual aborda esses temas, trazendo também entrevistas com personalidades específicas para falar sobre cada assunto. Um dos idealizadores e colaboradores do programa é o Bispo Maurício Andrade, que concedeu entrevista ao Correio e falou sobre qual o objetivo de apresentar assuntos políticos aos fiéis.

Por que fazer um podcast da igreja Anglicana do Brasil?

O podcast 'Radar Direitos Humanos' integra um projeto mais amplo da Diocese Anglicana Brasília, que é o projeto Advoca-se. A Diocese Anglicana de Brasília está fazendo essa iniciativa desde 2021. Com o apoio de alguns parceiros internacionais, estamos fazendo uma articulação de presença nos espaços de pressão política em Brasília. A finalidade da igreja é ter uma presença nos meios de decisões políticas, causar alguma influência e ter uma presença de testemunho para a justiça e para a verdade. Em junho, nós tratamos sobre a questão LGBTQIA , que era o mês da inclusividade. Temos tratado de temas como a questão da violência contra mulheres, a transformação social. Nós queremos colocar para conhecimento da sociedade.

Em quais causas a Igreja Anglicana do Brasil, ou a Diocese de Brasília, atuam?

Temos o pressuposto de que a missão da Igreja Anglicana não é somente pregar. Não é somente proclamar o evangelho. Mas é também ter ações concretas. A missão da igreja se constrói em cinco grandes ênfases: a proclamação do evangelho, porque toda igreja tem que anunciar; a questão de preparar, treinar as pessoas que se tornam anglicanas; na terceira questão, trabalhar em amor e solidariedade para todas as pessoas; na quarta, a gente diz que a gente precisa lutar pela transformação das estruturas injustas da sociedade, construindo cultura de reconciliação e de paz. E na quinta, a gente diz que a missão da igreja é também zelar pela criação, ou seja, é a questão do meio ambiente.

O que são essas estruturas injustas que o senhor menciona?

É toda essa situação que a gente vive em um país como o Brasil hoje de desigualdades. A desigualdade social e a vulnerabilização das pessoas. Eu não digo que as pessoas estão em situação de vulnerabilidade, elas estão sendo vulnerabilizadas pelo sistema que fortalece as relações de desigualdade. Quando a gente fala de lutar por transformar as estruturas injustas da sociedade, a gente está envolvido no Grito dos Excluídos, por exemplo. Há outra situação muito forte nesse país, que é a questão da demarcação das terras indígenas.

O senhor acha que o verdadeiro cristão deve ser engajado na política e nas causas sociais?

Exatamente. Essa é a nossa ênfase. Porque o Evangelho de Jesus cobra ações. Jesus Cristo foi uma pessoa marginalizada. Jesus Cristo esteve com as pessoas marginalizadas. Jesus Cristo lutou contra o poder do estado de Herodes. Jesus Cristo esteve no espaço de estar com aquelas pessoas que estavam à margem da sociedade. Então o Evangelho de Jesus Cristo exige de nós compromisso e ação. A Igreja Anglicana é conhecida mundialmente por conta, entre outras razões, da fala de um arcebispo na África do Sul. Estou falando do bispo Desmond Tutu, que ganhou o prêmio Nobel da Paz em 1985. Ele dizia que, se o cristão tomar parte, não há espaço para ficar neutro. Quando a gente fica neutro, a gente está tomando a posição do opressor.

Mas diversas igrejas atuam politicamente...

É muito interessante porque, quando em algumas igrejas, as pessoas se envolvem na política pela direita, ou por quem está no governo, isso não é problema. Agora, quando as pessoas fazem oposição ao governo ou estão lutando por transformar sociedades injustas, algumas igrejas dizem que nisso não podem se envolver. Nós entendemos que não há espaço para neutralidade, há espaço para denúncia ao profetismo e para transformação. É por isso que estar no meio da política não está fora do Evangelho. Não estou falando de partidos políticos; estou falando de política no sentido lato da palavra, de fazer políticas que geram transformação para a sociedade.

A democracia corre perigo no Brasil?

Estamos vivendo um dos tempos mais difíceis dos últimos anos. Quando a gente recorda a carta em defesa da democracia de 1977, e reedita-se uma carta pela democracia em 2022, significa que nós e os movimentos populares e movimentos sociais estão preocupados com o momento político que a gente vive. Eu assinei a carta de 2022 porque entendemos que devemos defender a democracia, e a democracia é a única forma de termos uma ação que gere e que construa mais igualdade. A democracia no Brasil está vivendo um momento de tensão, e esse momento de tensão tem que ser fortalecido por reações públicas, jurídicas e concretas, como tem sido feito atualmente no Brasil. Mas acredito que prevalecerá a democracia, o senso político que esse país tem construído nos últimos 30 anos.

Recentemente o arcebispo de Canterbury, Justin Welby, declarou a validade de relações sexuais homoafetivas e também disse que é muito difícil assegurar a unidade da igreja Anglicana. Qual a sua opinião sobre o primeiro tema? E há uma divisão entre anglicanos?

O acolhimento das pessoas do mesmo sexo e a bênção, o casamento das pessoas do mesmo sexo, têm sido um diálogo desde 1988. No fim de 2018, a Igreja Anglicana do Brasil aprovou nas suas normas a autorização para o casamento de pessoas do mesmo sexo. Temos a convicção de que nós não estamos, com isso, fazendo nenhuma coisa extraordinária. Estamos, digo mais uma vez, fazendo o que o Evangelho nos diz. O Evangelho nos diz que Jesus Cristo é amor. O Evangelho nos diz que o amor tem que ser incondicional. O Evangelho diz que, através da Primeira Carta de João, que o perfeito amor lança fora todo o medo. Nós não precisamos e não devemos ter medo do amor. Nós precisamos acolher as pessoas que amam verdadeiramente umas às outras. E por isso que no Brasil, aqui na Diocese de Brasília, nós temos reafirmado esta experiência de acolhimento a todas as pessoas, independentemente da sua orientação sexual. Todas as pessoas são bem-vindas, porque esta é mensagem do Evangelho.

E quanto às declarações do arcebispo de Canterbury?

De fato, esse é um tema que tem separado muitas das igrejas ao redor da comunhão anglicana. Porque o que acontece é que a comunhão anglicana não é uma federação de igrejas. Justin Welby é o arcebispo de Canterbury, mas ele não é o 'papa' da Igreja Anglicana. Ele não tem jurisdição sobre nenhuma outra igreja. A Igreja Anglicana está presente em 165 países. São 42 províncias, assim como o Brasil é uma província, e todas elas são autônomas entre si. A comunhão anglicana é uma família e por isso que o nome é comunhão. Não é federação. Porque não somos uma federação de igrejas, onde todos precisam ter as mesmas decisões comuns. Não. A comunhão anglicana é uma família de igrejas onde cada unidade, cada província é uma igreja ligada à comunhão. Então, por exemplo, uma decisão que acontece na igreja nos Estados Unidos, ela não tem reflexo para o Brasil. Cada uma precisa tomar suas decisões. Na Igreja Anglicana, nós temos que compreender a diversidade. Somos uma comunhão de igrejas diversas em diferentes contextos, em diferentes realidades, em diferentes momentos. Você não pode comparar a cultura e a realidade social, político-cultural do Brasil com a Uganda. Uganda tem uma lei que diz que homossexualidade é crime. Então você tem que entender que eles têm essa compreensão e eles deveriam compreender que nós também temos outra. Porque o importante para mim, eu sempre digo, que o importante é compreender e aceitar. Que quem é diferente de mim é somente diferente. Não é errado. É diferente. Então esse, para mim, é um princípio para a gente continuar mantendo a construção da unidade, mas que, como disse o arcebispo na conferência, a unidade tem se estremecido por conta desse tema da questão da sexualidade humana.

*Estagiário sob a supervisão de Carlos Alexandre de Souza

 

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