Desenvolvimento

Saneamento: Lula enfrentará dificuldades para cumprir metas do Marco Legal

Enquanto entidades defendem participação da iniciativa privada, novo governo avalia revogar decretos em vigor

Michelle Portela
postado em 30/12/2022 03:55
 (crédito: Marcelo Camargo/Agência Brasil)
(crédito: Marcelo Camargo/Agência Brasil)

O Brasil está a uma década do prazo para o cumprimento das metas estabelecidas pelo Marco Legal do Saneamento Básico (Lei Federal 14.026/2020). Pela norma, até 2033, o país deve garantir que 99% da população tenha acesso ao abastecimento de água potável e que 90% da população deve ser assistida com serviços de coleta e tratamento de esgoto. O tema voltou à pauta do dia com a sinalização do novo governo em revisar o documento, com principal atenção às concessões e privatizações, enquanto entidades já se mobilizam para defender as parcerias público-privadas.

Lideradas pela Associação Nacional das Concessionárias Privadas de Serviços Públicos de Água (Abcom), na última semana, oito associações enviaram uma carta ao presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva para apontar riscos de retrocessos nas iniciativas do marco com o novo governo. O principal temor é de que a participação da iniciativa privada em projetos do setor seja vetada, o que dificulta a captação de quase R$ 1 trilhão para a universalização dos serviços.

Assinam a carta os dirigentes da Associação Brasileira da Infraestrutura e Indústrias de Base (Abdib), Associação Brasileira de Engenharia Industrial (Abemi), Associação Brasileira da Indústria de Máquinas e Equipamentos (Abimaq); Sistema Nacional das Indústrias de Equipamentos para Saneamento Básico e Ambiental (Sindesam ), e Sindicato Nacional das Concessionárias Privadas de Serviços Públicos de Água e Esgoto (Sindcon). Também são signatários Associação Paulista de Empresas de Consultoria e Serviços em Saneamento e Meio Ambiente (Apecs), Associação Brasileira de Consultores de Engenharia (Abce) e Sindicato Nacional das Empresas de Arquitetura e Engenharia Consultiva (Sinaenco).

Embora a questão do saneamento seja pouco citada no governo de transição, o grupo de trabalho de Cidades analisou principalmente a revogação de dois decretos. O decreto nº 10.710, de 31 de maio de 2021, estabeleceu a metodologia de comprovação da capacidade econômico-financeira das empresas de saneamento e serviu de barreira para invalidar mais de mil contratos de saneamento firmados entre estatais e municípios.

"Trata-se de ato normativo tecnicamente ruim e, ainda, com conteúdo discriminatório em relação aos prestadores públicos estaduais e municipais, e que vem causando muitos danos ao saneamento brasileiro. A medida (revogação) é importante para destravar investimentos, inclusive incentivando parcerias público-privadas, e fortalecer as entidades reguladoras", diz o documento.

O segundo decreto que pode ser suspenso regulamenta os requisitos para acesso a recursos federais, entre eles, a regionalização dos serviços, de acordo com o mapeamento do Instituto Água e Saneamento. O decreto 10.588, de 24 de dezembro de 2020, estendeu o prazo para os estados aprovarem suas leis de regionalização e também para que agências reguladoras apresentassem suas conclusões sobre a capacidade econômica financeira dos contratos. Já em 1° de abril de 2022, foi publicado o nº 11.030/2022, que ampliou o prazo em mais um ano para tais ações.

Um ponto relevante na discussão sobre saneamento diz respeito à participação privada no setor. Aprovada num acirrado debate no Congresso Nacional, a mudança foi entendida como inflexão do governo do presidente Jair Bolsonaro (PL), pois garantiu a possibilidade de ingresso de recursos privados no setor de águas e saneamento básico no país.

De acordo com a ex-ministra das Cidades Inês Magalhães os setores privado e público apontam que o marco, atualmente, traz informações conflitantes e contraditórias. Entre as contradições, Magalhães observa que os decretos não consideram assentamentos informais e áreas rurais como parte para a universalização do saneamento.

Para ela, os decretos precisam deixar o conceito mais preciso. "Esse é um dos pontos que precisamos deixar mais claro, o que é universalizar. Podemos dar maior precisão do que foi feito nos decretos", disse a ex-ministra. "Ainda que seja importante a participação do setor privado, em investimentos de infraestrutura o setor público é muito importante", ponderou o ex-prefeito de Niterói (RJ) Rodrigo Neves (PDT).

O mercado acompanha de perto este movimento. "Enfatizamos a importância de fortalecer os quadros técnicos da Agência Nacional de Águas (ANA), para que a agência esteja em posição de garantir o cumprimento do novo marco, continuidade das pautas das normas de referência, avanço da regionalização e papel do BNDES na estruturação", explica Moisés Cona, diretor executivo do GRI, grupo que conecta players do setor de infraestrutura.

Obras paradas

Em termos de operações, o setor enfrenta dificuldades. De acordo com o Painel de Obras paralisadas do Tribunal de Contas da União (TCU), ferramenta que reúne as informações mais recentes sobre a execução dos contratos custeados com recursos federais, existem 388 obras de saneamento paralisadas no país.

No total, subiu de 29% para 38,5% nos últimos dois anos o percentual de obras públicas paralisadas no país, o que significa dizer que dos mais de 22,5 mil contratos pagos com recursos da União, 8.674 são considerados interrompidos pelo TCU, que somam R$ 27,2 bilhões.

O investimento privado é considerado fundamental para o cumprimento das metas previstas até 2033. Estudo da Associação e Sindicato Nacional das Concessionárias Privadas de Serviços Públicos de Água e Esgoto (Abcon/Sindcon) mostra que um investimento de R$ 893 bilhões em saneamento básico, ao longo de 12 anos, resultará num ganho no Produto Interno Bruto (PIB) de aproximadamente R$ 1,4 trilhão.

Desde 2020, quando foi aprovado o marco regulatório do saneamento básico, até setembro de 2022, foram R$ 52,9 bilhões em investimentos realizados por concorrências. Os leilões esperados para 2023 devem gerar R$ 24,45 bilhões em investimentos, de acordo com dados do Panorama da Participação Privada no Saneamento 2022.

Os dados mais recentes do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS), de 2020, mostram que 55% da população total têm acesso à rede coletora de esgoto e 63,2% da população urbana é atendida pelo serviço. Quando o assunto é abastecimento de água, 84,1% da população é atendida. Essa faixa sobe para 93,4% quando analisada a população urbana.

O Novo Marco Legal do Saneamento, instituído pela Lei n. 14.026/2020 em julho de 2020, criou mecanismos para a atração de investimentos privados destinados à expansão dos serviços. "O marco obriga os municípios ou o conjunto de municípios a realizar concessões por meio de licitação pública, ou seja, o gestor não pode escolher o operador dele sem um processo de licitação. Assim, o município fica com a melhor proposta e a mais competitiva", destaca Percy Soares Neto, diretor-executivo da Abcon/Sindcon.

Os investimentos do setor privado poderão elevar o PIB brasileiro em 2,7% até 2033, ainda de acordo com o estudo da Abcon — e por essa razão, não podem ser ignorados. "O novo marco [do saneamento] tem sido bem sucedido. Para que a universalização seja alcançada, será necessário contar com o setor privado. Seria ilusório acreditar que Estados, municípios e União tivessem recursos para fazer os investimentos necessários que somam somente para água e esgoto", diz o economista Gesner Oliveira, um dos principais articuladores do setor.

Desigualdade

O tema foi motivo de debates também na COP-27, realizada no Egito em outubro deste ano, como elemento vital para o alcance de metas ambientais. Presente à COP-27, o presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva reforçou que a cadeia produtiva do saneamento funcionaria como vetor de desenvolvimento econômico sustentável. Ainda de acordo com a equipe de transição, o Ministério do Desenvolvimento Regional (MDR) precisaria de R$ 5 bilhões em 2023 para tocar ações previstas, mas a dotação orçamentária da pasta ficou abaixo dos R$ 3 bilhões.

No Egito, Lula indicou a diretriz de seu governo: "Gerar empregos em indústrias menos poluentes na cadeia industrial da reciclagem, que melhora o aproveitamento das matérias primas, e no saneamento básico, que protege a nossa saúde e nossos rios cuidando da água, elemento indispensável para a vida".

Entre os principais investidores do saneamento no Brasil está o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), que investiu mais de US$ 2,4 bilhões. "A universalização do acesso aos serviços de saneamento é uma dívida social pendente em todos os países da América Latina e do Caribe. Neste contexto, ainda que o Brasil tenha registrado avanços importantes nos últimos anos, como a aprovação do Novo Marco Legal do Saneamento, precisa investir cerca de R$ 900 bilhões até 2033 para atingir a universalização dos serviços de água potável e esgotamento sanitário", destaca Morgan Doyle, representante do BID no Brasil.

Para a Luana Pretto, diretora executiva do Instituto Trata Brasil, há uma série de razões, históricas e atuais, que justificam o fato de o Brasil figurar apenas como o 87º país dentre os mais desenvolvidos, segundo a Organização das Nações Unidas.

Uma delas é a desigualdade social. Segundo o Painel do Saneamento, portal sob a curadoria do Instituto Trata Brasil, a renda média mensal da população assistida pelos serviços de água e esgoto chega a ser quatro vezes maior do que a renda da população desassistida, caso da região sul (onde aqueles que têm acesso ganham, em média, R$ 3.304,21 e os desassistidos R$ 808,51). Em todas as regiões do Brasil, inclusive, essa é uma constante.

Por isso, priorizar o setor elevaria os ganhos para toda a sociedade. "Como já se sabe, os ganhos do investimento em saneamento são imensos: aumento da frequência escolar, valorização do mercado imobiliário, incremento ao turismo, à geração de emprego e renda e a melhoria da saúde e da qualidade de vida das pessoas — dados do Sistema Único de Saúde (SUS) publicados pelo IBGE, sobre as doenças relacionadas à falta de saneamento, mostram que a falta da infraestrutura gerou custos na casa dos R$ 100 milhões ao poder público somente em 2017", explica Pretto.

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