sociedade

Aguardando por até séculos, quilombolas pedem políticas fora do papel

Comunidades temem que melhorias no acesso a serviços de saúde e educação do programa Aquilombola Brasil, anunciado pelo governo em 21 de março, não cheguem a quem realmente precisa

Victor Correia
postado em 02/04/2023 06:00
 (crédito: Credito:Elizabeth Colares/EM/D.A Press)
(crédito: Credito:Elizabeth Colares/EM/D.A Press)

Organizações de quilombolas celebraram o anúncio do governo federal da titulação de três terras em Minas Gerais e Sergipe, mas defendem que há muito mais o que ser feito em prol de comunidades que aguardam há séculos a efetivação de seus direitos. O programa Aquilomba Brasil, divulgado em 21 de março pela ministra da Igualdade Racial, Anielle Franco, prevê não só títulos de terras para quilombos, mas também promove o acesso dessas comunidades à educação e à saúde, além de energia elétrica. A proposta, segundo a própria pasta, é uma ampliação do projeto Brasil Quilombola de 2007.

A preocupação das comunidades é que as ações, como no passado, fiquem só no discurso. Mesmo assim, existe uma abertura do governo atual para o diálogo, coisa que não havia sob a última gestão.

mapa quilombos
mapa quilombos (foto: Pacífico)

"Acho que o Estado não tem que ter desculpa. É obrigação que faça as políticas chegarem (nas comunidades). Nós sabemos que, enquanto quilombolas, às vezes a gente se sente muito menos do que cidadãos", disse a advogada integrante da assessoria jurídica da Coordenação Nacional de Articulação de Quilombos (Conaq), Vercilene Dias, do Quilombo Kalunga.

A titulação de terras é considerada a principal medida para os quilombos, pois funciona como porta de entrada para o acesso aos demais direitos. O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) estima que existam quase 6 mil comunidades no país. Segundo o Observatório Terras Quilombolas, com levantamento feito pela Comissão Pró-Índio de São Paulo, 148 terras estão regularizadas, 58 estão parcialmente tituladas e 1.803 processos de regularização estão abertos no Brasil, segundo dados de fevereiro deste ano. A organização monitora, desde 2004, a regularização fundiária de quilombos.

Ao Correio, a ministra da Igualdade Racial, Anielle Franco, afirmou que o plano nacional de titulação foi anunciado para firmar o compromisso de sua pasta e do governo federal com os quilombolas. "A gente sabe que essas pessoas estão na luta há muito tempo, e a gente não pode errar com elas. Então, temos que ir segundo todo o processo, mas também entender suas demandas", acrescentou.

Um dia após o anúncio de medidas contra o racismo, em 21 de março — quando é celebrado o Dia Internacional da Luta pela Eliminação da Discriminação Racial — que incluíram o Aquilomba Brasil, a ministra participou de um seminário sobre racismo e direitos humanos, em Brasília.

"Eu me arrepio em dizer que, pelo menos, foi um feito que eu vou lembrar com muito orgulho lá na frente. Mas vamos continuar. Foram três títulos até agora, e espero que, até o final do ano, tenham mais", disse Anielle.

Diálogo existe

A pandemia da covid-19 escancarou a fragilidade nos quilombos, como a falta de postos de saúde. Sem registro, muitas comunidades não conseguiram produzir alimentos para sua subsistência porque tinham conflitos em suas terras, empreendimentos, ou porque não tinham recursos financeiros. Outras, já em processo mais avançado de titulação, conseguiram produzir e distribuir alimentos. A falta de regularização também impede que os quilombos consigam crédito para produzir.

"É necessário que se reconstrua a estrutura política, mas é preciso que essa política efetivamente ocorra, que o efeito seja sentido. Não só ir lá fazer um evento, prometer, mas isso ficar entre a União, estados e municípios e não chegar nas comunidades", explicou Vercilene.

Segundo ela, o Brasil Quilombola também previa aumentar o acesso a saúde e educação, mas muitas das medidas não chegaram a ser implementadas efetivamente. O pouco que havia sido, de fato, conquistado, como a construção de postos de saúde nas comunidades, foi desmontado ou precarizado no governo Bolsonaro. "No (governo) anterior, isso ficou totalmente paralisado, inclusive houve um desmonte. Os quilombos titulados o foram por ações judiciais", acrescentou.

De acordo com a advogada, mais de 300 ações civis públicas foram movidas contra a União pela regularização de quilombos.

Sobre a relação com o atual governo, Vercilene ressalta que a gestão está sendo bastante receptiva, embora alguns ministérios enfrentem dificuldades de agenda.

"O que a gente espera é que o Aquilomba Brasil não seja igual ao Brasil Quilombola, que o governo faça com que as políticas cheguem realmente nos territórios e não fique só no diálogo, na publicidade", enfatizou Vercilene. "Os títulos entregues (no lançamento do programa) estão em processo há mais de 10 anos, 15 anos. Cabe lembrar que não é um título total, são parciais. O processo não acontece de uma vez, você titula uma gleba, uma propriedade de cada vez", completou.

Para Carolina Bellinger, da coordenação adjunta da Comissão Pró-Índio de São Paulo, as políticas anunciadas pelo governo até agora ainda não visam um dos problemas centrais para a regularização dos quilombos, que é o fortalecimento do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra).

"Também aguardamos com grande expectativa o que seria um forte sinal do comprometimento do governo Lula com os direitos quilombolas: a assinatura de todos os títulos que ficaram engavetados no governo Bolsonaro. Somente três terras quilombolas tiveram porções do território regularizadas em 21 de março. Informações ventiladas na imprensa indicam que são 34 processos concluídos que aguardam apenas por uma assinatura", frisou Carolina.

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