Para além do Vale do Javari: quem foi Bruno Pereira

O nascimento de um indigenista: a trajetória de Bruno Pereira na Funai

Os 10 anos que Bruno trabalhou na Funai foram marcados por muito trabalho, mas também conflitos. Houve problemas administrativos, tensões, desafios institucionais e obstáculos governamentais

Isabel Dourado*
postado em 04/06/2023 06:02
 (crédito: Beto Marubo/Divulgação )
(crédito: Beto Marubo/Divulgação )

No primeiro encontro com o gerente da hidrelétrica de Balbina, Roland Céspedes, Bruno falou de seus anseios de trabalhar com os indígenas Waimiri-Atroari da região. Céspedes explicou a Bruno que a Eletronorte apenas financiava o programa que era coordenado pela Funai. “Ele quis saber de que forma poderia contribuir na área ambiental e aceitou a vaga para trabalhar com reflorestamento nas áreas degradadas pela construção da Usina”, relata Céspedes.

O antigo colega de trabalho conta que Bruno se animou ao saber que iria comandar o reflorestamento da região. “Ele falou: ‘Essa área me interessa mais, trabalhar nessa área de reflorestamento’”. “Ele preferiu ir para a área de reflorestamento onde ele ia basicamente comandar. Eu já tinha feito um plano de ação, mostrei tudo que tínhamos que fazer e levei ele para conhecer a área e a equipe contratada”, descreve Céspedes.

Bruno propôs que a comunidade participasse do processo de reflorestamento. Fez questão de conversar com a população e explicar como ela poderia cooperar. “Ele fez o trabalho de ir até as comunidades ribeirinhas. Passou a conversar com a comunidade, conseguiu negociar. Nós começamos a comprar as sementes dos ribeirinhos. Foi uma forma de ajudá-los. Bruno se tornou um dos meus braços direitos no reflorestamento”, comenta Céspedes.

Esta reportagem faz parte da série ‘Para além do Vale do Javari: quem foi Bruno Pereira’. No aniversário da morte do indigenista Bruno Pereira, o Correio Braziliense reconstitui a trajetória do apaixonado pelos povos originários que acabou tornando-se um mártir da causa indígena. Confira as outras reportagens da série:


Reconhecido pelos amigos por ser inteligente e autodidata, Bruno sempre buscou ampliar seus conhecimentos sobre os povos indígenas. Aprendia a língua deles, lia publicações que abordassem a vida dos povos da floresta, como artigos da National Geographic e os trabalhos de indigenistas notáveis como Sydney Possuelo. “Era uma pessoa incansável na sua busca por conhecimentos que pudessem respaldar sua atuação em campo”, conta o amigo Ivan.

Os sete anos que passou em Balbina foram fundamentais para o desenvolvimento profissional e pessoal de Bruno. Mas ele queria mais. Sonhava trabalhar com os povos da floresta.

Em 2010, o curso do rio da vida de Bruno tomou outro rumo. A Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) estava com um concurso aberto para técnico indigenista. O aficcionado pernambucano não poderia perder a oportunidade. Dedicou-se com afinco para passar no exame. “Ele meteu a cara. Acordava 3, 4 horas da manhã para estudar. Eu ajudava porque o sonho dele acabou sendo o meu também”, conta Keith Pinheiro.

Bruno escolheu ir para Atalaia do Norte, a mais de 1.100 quilômetros de Manaus, e atuar na Terra Indígena do Vale do Javari. Depois de passar na prova escrita, ele participou de uma seleção final. Foi nesse momento que conheceu Beto Marubo, líder indígena do Vale do Javari e representante do povo Marubo.

Com 8,5 milhões de hectares, o Javari é a segunda maior terra indígena demarcada do Brasil. Nesse local, do tamanho de Santa Catarina, além dos parentes de Beto, vivem povos kanamari, korubos, matis, matsés e tsohom-djapás. Há ainda grupos de línguas e costumes desconhecidos mesmo pelos indígenas em contato com a sociedade nacional.

Beto trabalhava na Funai e tinha a função de selecionar os candidatos que iriam atuar em campo. Bruno conseguiu o inesperado. Pelos critérios cobrados na seleção, ele não tinha o perfil para atuar no mato. “Eu tinha uma função na Funai com atribuição de fazer essa seleção dos técnicos indigenistas que atuariam em campo. Eu coordenava esse setor de fiscalização da Funai e a maioria dos candidatos foram reprovados”, recorda Marubo. “Ele foi o primeiro a estar fora dos nossos planos porque ele era grandão, gordo e alto, não tinha o menor perfil para atuar no mato”, acrescenta.

A vocação de Bruno para ser escudeiro dos povos da floresta foi logo percebida pelo pai de Beto Marubo. O chefe do clã dos marubos viu que o candidato seria um líder. “Meu pai chegou em mim e falou: ‘Olha, nem um desses candidatos têm perfil para atuar no mato’. Eu perguntei como ele sabia, e ele me respondeu que estava conversando com eles”, descreve Beto Marubo. “Mas meu pai nem sequer falava português. Falou que viu o Bruno e que ele tinha uma alma bonita e que valia a pena escolher ele”, conta o amigo do indigenista.

Não houve arrependimentos na escolha. Beto entregou para todos os candidatos relatórios técnicos e materiais que abordavam detalhes sobre os povos indígenas do Vale do Javari. “Na metade da segunda semana, o Bruno já estava me fazendo questionamentos técnicos. Aquilo me chamou atenção. Ele leu mesmo, estudava dia e noite o material. Depois de 15 dias, ele já tinha lido tudo, feito anotações”, relata o integrante do povo marubo.

A trajetória na Funai

Com a entrada para a Funai, Bruno passou a ter uma nova dimensão da floresta Amazônica. Começou a traçar um caminho com os povos originários. “Foi ali que a gente se aproximou. Não tem como passar 15 dias no mato e não ter uma aproximação com a pessoa. Você vai entendendo o sonho dela, do que ela gosta. Você vê a alma da pessoa porque a floresta é um lugar inóspito, onde você está vulnerável. Você está numa exigência física e psicológica extrema”, afirma Marubo.

  • Bruno Pereira e Beto Marubo Beto Marubo
  • Indigenista Bruno Pereira Beto Marubo
  • Bruno Pereira Rio Uatuma Ivan Soler

Os 10 anos que Bruno trabalhou na Funai foram marcados por muito trabalho, mas também conflitos. Houve problemas administrativos, tensões, desafios institucionais e obstáculos governamentais. Com sua obstinação peculiar, Bruno entendia os desafios como missões a serem cumpridas. Dentro da Funai, os colegas mais próximos consideravam-no estratégico, informado, aberto ao diálogo, democrático, competente, articulado e companheiro de lutas.

Iltercley Chagas, servidor da Funai, começou a trabalhar com Bruno em 2014 e lembrou da atuação do indigenista em campo. “Era exigente e de fato um indigenista nato. Tinha mais obrigações como indigenista, eu sentia isso, do que como servidor público. A tal ponto de pedir licença e perceber que a questão indígena estava, de certa forma, muito sucateada pelo Estado”, analisa. “Bruno tinha contato com delegados da polícia, Ibama, Ministério Público. Conseguia dialogar, articular, era muito articulado”, diz.

Em 2019 o Brasil sob Bolsonaro vivia um contexto de completa destruição ambiental e de desmonte das instituições indígenas e ambientais — Funai, Ibama, ICMBio. O acirramento entre o aparelho estatal e as comunidades indígenas tornava-se crescente. “Era a Funai contra os índios. Bruno se posicionava muito veemente com relação ao Estado. Como dizia um colega meu, o chefe dele eram os índios. Não era o governo. No nosso trabalho, a gente incorpora isso”, explica Iltercley.

Na época Bruno era responsável pela Coordenação Geral de Indígenas Isolados e de Recente Contato (CGIIRC) da Funai. Ele foi exonerado do cargo em outubro de 2019, 15 dias depois de comandar uma série de ações de combate ao garimpo ilegal em terras ianomâmis. A exoneração foi assinada pelo então secretário-executivo de Sergio Moro no Ministério da Justiça, Luiz Pontel, e pelo presidente da Funai, o delegado Marcelo Augusto Xavier. Foi o estopim para Bruno pedir licença do órgão.

“Ele estava como chefe de índios isolados, estava muito empolgado. Fazia parte da vida dele, ele queria acompanhar as ações em campo. Bruno coordenou uma das maiores ações de combate ao garimpo no Vale do Javari junto com as forças especiais da Polícia Federal e o Ibama, destruíram umas 40 dragas. Ele estava coordenando duas operações ao mesmo tempo, uma nos ianomâmis e outra no Vale do Javari. Mas quando ele estava voltando da operação, disse que o governo Bolsonaro ia tirá-lo da Funai”, conta Beto Marubo.

*Estagiária sob supervisão de Carlos Alexandre de Souza

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