Imunização

Rombo milionário e fábrica em obra há 34 anos: a crise que fez governo intervir na produção de vacina BCG

Fundação Ataulpho de Paiva (FAP) tinha ambições de se tornar fornecedora não apenas nacional, mas internacional da BCG — até o momento, não conseguiu alcançar nenhum desses objetivos


A Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) anunciou na segunda-feira (5/6) que assinou um acordo para retomar a produção nacional da vacina BCG, que combate a tuberculose, e intervir na Fundação Ataulpho de Paiva (FAP), no Rio de Janeiro (RJ) — instituição filantrópica e única produtora do imunizante no Brasil.

Desde 2016, a produção e distribuição do imunizante da FAP está irregular devido a interdições da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). No ano passado, por exemplo, o Ministério da Saúde pediu aos Estados o racionamento da vacina, "dada a disponibilidade limitada no estoque nacional em razão de dificuldades na aquisição deste imunobiológico."

Segundo um dos laudos da Anvisa a que a BBC News Brasil teve acesso, a produção na atual fábrica da FAP, no bairro de São Cristóvão, zona norte do Rio, "apresenta risco à saúde da população brasileira" por não atender às boas práticas de produção de imunobiológicos.

A intervenção da Fiocruz na FAP, assumindo parte da direção e do conselho deliberativo da entidade, é mais um capítulo de uma longa trajetória de problemas na produção nacional dessa que é uma das primeiras vacinas dada a recém-nascidos no Brasil. A FAP também fabricava, antes das interdições, a Imuno BCG, usada no tratamento de câncer de bexiga.

O imbróglio envolve ainda uma fábrica em construção há 34 anos em Xerém, na cidade de Duque de Caxias (RJ) — e que contou com pelo menos R$ 41,9 milhões em convênios com o Ministério da Saúde, conforme a BBC News Brasil revelou em 2020.

Prometida como solução para o abastecimento da BCG no Brasil, a nova fábrica começou a ser construída em 1989 e nunca produziu sequer uma dose do imunizante.

A Fiocruz afirmou que vai "prestar auxílio para que a fábrica de Xerém seja finalmente concluída dentro de 2 a 3 anos."

Reprodução/Google Street View
Fábrica em Xerém, na cidade de Duque de Caxias (RJ), está em construção desde 1989

Com essa demora de mais de três décadas, o próprio Ministério da Saúde recusou ao menos duas prestações de contas da entidade às quais a reportagem teve acesso, pedindo a devolução integral aos cofres públicos de ao menos R$ 24,8 milhões — parte desse dinheiro foi cobrada pessoalmente do ex-presidente da FAP, o médico patologista Germano Gerhardt Filho, e parte da própria fundação.

Os valores seriam usados para a aquisição e a instalação de equipamentos na nova fábrica. No entanto, os dois relatórios do Ministério da Saúde constataram uma série de problemas na prestação de contas da FAP sobre como os recursos públicos foram utilizados em Xerém.

A pasta apontou que, em alguns casos, a FAP comprou apenas "parcialmente" os equipamentos para os quais recebeu os recursos para adquirir. Além disso, o ministério afirmou que as prestações de conta foram entregues com atraso pela fundação.

"Ao analisar toda documentação apresentada, assim como os pronunciamentos da área técnica responsável e os esclarecimentos prestados, ficou demonstrado a forma temerária em que todo o processo foi conduzido, arrastando-se por anos", concluiu o ministério no documento.

Com as mudanças anunciadas pela Fiocruz em junho, Gerhardt Filho deixou a presidência da FAP, mas permanecerá no conselho deliberativo. Assumiram a diretoria Luiz Roberto Castello Branco, que anteriormente era diretor científico da fundação; e Artur Couto, da Fiocruz.

Segundo a Fiocruz, a nova diretoria vai começar a negociar as dívidas da FAP e vai apresentar, em até 30 dias, um plano de recuperação institucional e econômico-financeira.

A BBC News Brasil questionou a FAP sobre as mudanças na gestão e as discrepâncias na prestação de contas, mas não obteve resposta até a publicação desta reportagem.

O Ministério da Saúde não respondeu se o valor apontado em seu parecer foi devolvido pela fundação e por seu antigo presidente.

"Os convênios celebrados junto à Fundação Ataulpho de Paiva se encontram em avaliação no âmbito do Ministério da Saúde, que considera medidas administrativas passíveis de aplicação para a finalização dos instrumentos", afirmou a assessoria de imprensa da pasta.

"O Ministério da Saúde mantém o compromisso com a defesa do interesse público, do erário e do bom atendimento à população, sempre com respeito às leis e com transparência", completa a pasta.

Produção temporária na Espanha

Enquanto a produção nas fábricas da FAP em São Cristóvão e em Xerém não é retomada, a Fiocruz diz ter iniciado uma negociação para que a vacina seja fabricada temporariamente na cidade de Vigo, na Espanha.

O plano é que, a partir do segundo semestre de 2024, as doses produzidas lá sejam entregues e usadas no Brasil. Para que isso ocorra, porém, a Anvisa precisa antes analisar e autorizar as doses produzidas na Espanha.

Todo esse projeto de retomada da produção da FAP envolve, além da Fiocruz, o Ministério da Saúde e o Instituto de Biologia Molecular do Paraná (IBMP) — este fruto de uma parceria entre a Fiocruz e o governo estadual do Paraná.

"Não se trata de importar vacina de outro fabricante. É a mesma vacina BCG da FAP que, em vez de ser produzida na planta de São Cristóvão, seria produzida em uma fábrica contratada na Espanha. Estaríamos apenas transferindo temporariamente a produção para um novo local, até a planta de Xerém estar finalizada", disse o diretor-presidente do IBMP, Pedro Barbosa, em um comunicado à imprensa.

Após as sucessivas interdições da fábrica da FAP em São Cristóvão, o Brasil tem obtido doses de BCG com o Fundo Rotatório da Organização Pan-Americana da Saúde (Opas), braço regional da Organização Mundial da Saúde (OMS). O fundo vende vacinas e insumos, como seringas, a governos locais e nacionais que não têm produção nacional disponível.

Fontes ouvidas pela reportagem afirmaram que as matérias-primas da vacina precisaram ser resgatada pela Fiocruz, pois corriam risco de serem perdidas nas más condições em que se encontravam nas instalações da FAP.

Recém-nascidos e pacientes com câncer afetados

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A BCG é uma das primeiras vacinas a ser aplicada em bebês

Desde que a fabricação nacional da BCG começou a ficar irregular no país, as famílias de bebês recém-nascidos e pacientes com câncer de bexiga sofreram consequências.

Em 2019, 12 Estados afirmaram ter recebido uma quantidade de doses menor do que o esperado, e algumas famílias relataram dificuldades em vacinar bebês.

Em abril de 2022, o Ministério da Saúde enviou para secretarias estaduais de saúde uma circular avisando que as doses de BCG enviadas seriam diminuídas e que os Estados precisariam racioná-las.

Juarez Cunha, diretor da Sociedade Brasileira de Imunizações (SBIm), comemorou o anúncio da retomada da produção nacional.

"Durante muito tempo, a gente teve autonomia da produção nacional da vacina BCG. É fundamental que a gente retome, porque é estratégico ter um parque de produção nacional de imunobiológicos, de vacinas", avalia o médico pediatra, acrescentando que a pandemia de covid-19 escancarou a importância de se ter uma indústria nacional de saúde.

A vacina BCG protege contra a tuberculose miliar e a tuberculose meníngea — formas graves da doença.

"Como os índices de tuberculose são muito importantes no país, a gente tem os casos mais complicados, então a vacina é a forma de proteger a criança dessas formas mais graves."

Como vários outros imunizantes, a cobertura vacinal da BCG teve quedas relevantes a partir de 2016. Antes disso, entre 1995 e 2015, a cobertura era considerada total (100%). Em 2021, ela chegou ao nível mais baixo já registrado, com cobertura de 74,9%. Em 2022, houve uma recuperação, com cobertura de 90% da população-alvo. Os números são do DataSUS.

Para Cunha, a irregularidade do abastecimento da BCG no país é um dos fatores que explica a diminuição da cobertura vacinal — por exemplo, porque diante de racionamentos, secretarias estaduais passaram a oferecer a imunização apenas mediante agendamento.

"Isso com certeza impacta nas coberturas vacinais, porque uma mãe vai procurar fazer a vacina [no filho] que não está disponível, ou tem que marcar para outro dia."

Pacientes com câncer de bexiga também foram fortemente afetados. Produzida pela FAP, a Imuno BCG é utilizada na maioria dos casos da doença, quando o tumor é dito superficial — por não ter atingido camadas musculares do órgão.

A aplicação da droga é chamada de um procedimento adjuvante, ou seja, é posterior à intervenção principal, que é a retirada do tumor.

Achar o medicamento virou tarefa quase impossível para os pacientes com câncer, tanto através do Sistema Único de Saúde (SUS) quanto em farmácias particulares. Sem ele, o risco de que o tumor se infiltre nas camadas musculares da bexiga aumenta, podendo levar à retirada da bexiga ou à necessidade de quimioterapia — procedimentos considerados invasivos.

Fundação é investigada

Nos anos 1980, a Fundação Ataulpho de Paiva foi uma das instituições que receberam investimentos por meio do Programa de Autossuficiência Nacional em Imunobiológicos (Pasni) — que visava justamente garantir uma produção nacional, sem que o país precisasse passar por todos os trâmites aos quais está sendo submetido agora na importação.

Quando o funcionamento da fábrica da FAP em São Cristóvão estava regular, as vacinas BCG eram compradas pelo governo federal através da modalidade "inexigibilidade de licitação", uma vez que esta era a única produtora no país do imunizante.

Em uma proposta de convênio com o Ministério da Saúde, de 2016, a instituição defendeu que "tornou o Brasil sempre autossuficiente na produção da Vacina BCG, nunca tendo havido a necessidade de importação deste produto".

Segundo o site da fundação, a nova unidade em Xerém teria o objetivo de produzir a BCG de forma a "suprir a demanda nacional e parte da internacional, uma vez que a instituição recebe consulta de vários países." Mas, 34 anos depois, a fábrica ainda não está cumprindo seu objetivo, nem nacional nem internacionalmente.

Nascida em 1900, a FAP é uma das mais tradicionais fundações de pesquisa e produção de vacinas do país. Mas, além dos problemas já relatados, a instituição também está passando por uma crise administrativa, com demissões de funcionários e passivos trabalhistas a serem discutidos na Justiça.

Além disso, em fevereiro de 2022, o Ministério Público do Rio de Janeiro (MP-RJ) abriu um inquérito civil para "investigar possíveis irregularidades na gestão da Fundação Ataulpho de Paiva e supostas condutas ilegais praticadas pelos membros de sua diretoria" a partir de uma denúncia encaminhada à ouvidoria do órgão.

Segundo a Fiocruz, a Curadoria das Fundações do MP-RJ aprovou todo o processo de recuperação da FAP anunciado nesta segunda-feira.