Bragança (PA) — Para o leigo, cada passo no manguezal é uma aposta. O chão pode ser firme, sujando pouco mais do que a sola dos pés. Mas pode, também, desaparecer durante a pisada, atolando o aventureiro na lama cinzenta até a cintura ou mais. Com a experiência, é possível aprender a identificar as raízes sob o solo e os locais onde a terra é mais firme. Apesar da aparência inóspita à primeira vista, o bioma é rico em fauna e flora e cumpre um papel importantíssimo para a natureza brasileira. Proporcionalmente, o mangue captura mais carbono do que a Floresta Amazônica. É, porém, um ambiente sensível à atividade humana e às mudanças climáticas, e precisa ser conservado.
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Na costa paraense, o projeto Mangues da Amazônia, criado por pesquisadores da Universidade Federal do Pará (UFPA) e sediado em Bragança, trabalha para reflorestar áreas degradadas e ajudar as comunidades que vivem do mangue a utilizar os recursos de forma sustentável. A iniciativa foi criada em 2018 a partir de um edital da Petrobras, que ainda financia o programa, mas começou a operar em 2021. Além disso, os funcionários e voluntários do Mangues também prestam apoio social aos moradores, incluindo educação de crianças e adolescentes e atendimento psicossocial.
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Os manguezais são florestas presentes em quase toda a faixa costeira do país, formando uma faixa de transição entre o bioma marinho e o terrestre. A água do mar avança sobre o continente com as marés cheias e se mistura com outros corpos d'água, formando o solo encharcado característico. A grande salinidade dos manguezais dificulta a sobrevivência da maioria das plantas, e há apenas três espécies adaptadas: o mangue-branco (Laguncularia racemosa), o mangue-preto (Avicennia schaueriana) e o mangue-vermelho (Rhizophora mangle), presentes em todo o litoral. Apenas no Rio Grande do Sul a baixa temperatura e as marés fracas, entre outros fatores, impedem a formação dos manguezais.
A costa amazônica tem a maior faixa contínua de mangues do mundo, com 7.500 km² entre o Amapá e o Maranhão, o que representa 80% de todo o bioma no Brasil. Na península de Bragança, que se estende da cidade paraense até a praia de Ajuruteua, cerca de 160 km² dos 180 km² são formados por bosques de mangue. A região é cortada pela rodovia PA-458, construída há cerca de 50 anos. A obra, porém, não levou em conta os impactos ambientais no manguezal, alterou o fluxo hídrico na região e prejudicou o desenvolvimento do ecossistema em uma grande área. Ao deixar Bragança no sentido Ajuruteua, é possível notar a diferença clara entre os mangues à direita da pista, que chegam a 25m de altura e têm troncos grossos e bem desenvolvidos, e os da esquerda, consideravelmente menores.
Segundo o biólogo, pesquisador e um dos coordenadores do Mangues da Amazônia Paulo César Virgulino Júnior, cerca de 200 hectares (2 km²) foram afetados pela construção da pista. A pista criou uma área com escassez hídrica, dificultando a chegada das marés — fenômeno essencial para encharcar o solo e mesmo para levar os propágulos, as sementes do mangue.
Apesar da baixa estatura das árvores na região, o local já foi, em grande parte, recuperado. Canais construídos facilitam a chegada da água e os esforços de plantio já trouxeram resultados. Paulo mostrou à reportagem uma área que havia sido desmatada recentemente pelas comunidades locais, mas que já se recupera sozinha.
O local faz parte da Reserva Extrativista (Resex) Marinha de Caeté-Taperaçu. Ou seja, apesar de ser uma área protegida, a extração de madeira, caranguejos e outros recursos pelas comunidades locais é permitida, desde que ocorra para uso próprio, não comercial, e seja feita de forma sustentável.
"São 20 anos de esforços que hoje nós temos aqui", explicou o biólogo. Antes do Mangues da Amazônia, outros projetos de restauração foram realizados no local. "Essa área foi cortada recentemente. Mas, por ter uma floresta ainda em pé, viva, você tem um banco gigantesco de plântulas de manguezal. Isso garante que essa floresta tenha maior chance de se recuperar sozinha", acrescentou.
No chão da clareira, ao redor dos sinais de desmatamento e troncos derrubados, milhares de pontos verdes mostram a recuperação do mangue — e a importância dos esforços de plantio feitos ao longo das décadas. Porém, os danos causados na região pela rodovia ainda estão presentes, e as plantas não vão crescer tanto quanto em um ambiente saudável. "Ainda tem essa situação de deficit hídrico. Apesar de ter árvores nascendo, falta água para elas", disse Paulo. Os esforços de conservação do projeto também abrangem as Resex Marinha de Tracuateua, de Araí-Peroba e de Gurupi-Piriá.
Viveiros
Há locais onde o manguezal não consegue se recuperar sozinho, e as árvores precisam ser plantadas manualmente. Para isso, o Mangues da Amazônia mantém dois viveiros na comunidade de Tamatateua, a cerca de 15km do centro de Bragança. As mudas são separadas em fileiras e irrigadas por canaletas conectadas a um igarapé, na beira do mangue, que se enche duas vezes por dia junto com a maré alta.
Juntos, os viveiros produzem 40 mil mudas por ano, e o ciclo de crescimento do plantio até o transplante leva, em média, oito meses. Para reflorestar cada hectare de mangue, com amplo espaço entre as plantas, são necessárias ao menos 2.500 mudas. Por isso, apesar da produção dos viveiros, o projeto utiliza principalmente propágulos coletados de dentro dos bosques para fazer a recuperação, usando a técnica chamada de plantio direto.
Os viveiros também contam com a colaboração de alunos de escolas próximas, que visitam o local, aprendem sobre a conservação dos mangues e ajudam a plantar novas mudas. Para a professora de língua portuguesa, artes e inglês Ciane Maria Ribeiro Pereira, que visitou o local pela primeira vez com uma turma da quarta etapa da Educação de Jovens e Adultos (EJA), o contato com a lama ajuda os estudantes a concretizar o que aprendem nas aulas.
"Eles acabam vivenciando o que eles já estão vendo na escola, com a disciplina de educação ambiental. Eles trabalham muito com essa questão de reflorestamento. Com certeza, estão podendo ver, na prática, o que eles já aprendem nos livros", disse Ciane Pereira. Além disso, mulheres da comunidade de Tamatateua são contratadas para preparar os sacos usados no plantio, o que serve como uma fonte de renda complementar.
Sumidouros
Para quem vive na região, manter o mangue de pé é questão de sobrevivência. Porém, o bioma também é essencial para o equilíbrio da natureza amazônica e para o combate às mudanças climáticas. De acordo com o professor da UFPE e integrante do Mangues da Amazônia Hudson Silva, os bosques funcionam como uma espécie de "sumidouro" de carbono.
"É um solo encharcado, úmido e tem essa coloração cinzenta porque não tem oxigênio. O processo de decomposição, de mineralização da matéria orgânica ocorre, mas ocorre mais lentamente, e faz com que o carbono fique retido mais tempo nesse solo", comentou.
Em outras florestas, o estoque fica, majoritariamente, nas próprias árvores. Por isso, o mangue consegue capturar de duas a três vezes mais carbono do que florestas em terra firme, comparativamente, incluindo a Floresta Amazônica. Além disso, o solo encharcado também contribui para segurar a emissão de metano, um dos gases-estufa mais danosos ao meio ambiente.
Isso traz mais um elemento de importância para a conservação. Manguezais degradados passam a emitir muito mais gás carbônico para a atmosfera e devolvem seu estoque de carbono ao ar, contribuindo para as mudanças climáticas. Mais grave, porém, representam um impacto devastador para as comunidades que constroem suas casas com a madeira do mangue, e que ganham a vida catando caranguejos no meio da lama.
O professor titular da UFPA e um dos fundadores do Mangues da Amazônia, Marcus Fernandes, faz questão de lembrar o papel social da preservação. O projeto surgiu como uma iniciativa de restauração do bioma, mas evoluiu nesses quatro anos de operação.
"Quando a gente faz um trabalho de conservação e de melhoria, ou de recuperação de área de manguezal, a gente está recuperando serviços ecossistêmicos que vão desde a manutenção do equilíbrio ambiental até a provisão de peixes, caranguejos e madeira. E também há o fato de ser um ambiente que tem uma base forte para o serviço cultural. Aqui é inspiração para muita coisa, é um local de religiosidade, principalmente de raízes africanas. Aqui é lugar de Nanã Buruquê", conta Fernandes, citando a orixá que simboliza a sabedoria da idade, a ancestralidade, a cura, a lama e o barro.
