A estreia de “Maria e o Cangaço” no Disney+ em abril de 2025 representa um marco significativo na produção audiovisual brasileira, não apenas por abordar um tema histórico emblemático, mas principalmente por reposicionar o protagonismo feminino nas narrativas de ação nacionais. A série de seis episódios, protagonizada por Isis Valverde no papel de Maria Bonita e Júlio Andrade como Lampião, quebra décadas de tradição cinematográfica que tradicionalmente centralizava as histórias do cangaço nas figuras masculinas.
A produção se destaca ao adotar uma perspectiva inovadora sobre eventos históricos amplamente conhecidos, oferecendo um olhar contemporâneo sobre questões de gênero e poder no sertão nordestino. Inspirada no livro “Maria Bonita: Sexo, Violência e Mulheres no Cangaço” de Adriana Negreiros, a série reconstrói a narrativa histórica colocando Maria Gomes de Oliveira como protagonista ativa de sua própria história, não apenas como companheira de um líder cangaceiro. Esta abordagem reflete uma tendência global de revisão histórica através da ótica feminina, mas com particularidades culturais genuinamente brasileiras.
Como a direção de Sérgio Machado revoluciona a estética do gênero?
A direção geral de Sérgio Machado, conhecido por filmes como “Cidade Baixa” e “Quincas Berro d’Água“, traz uma linguagem cinematográfica sofisticada que eleva o padrão técnico das produções nacionais para streaming. A fotografia de Adrian Teijido, profissional indicado ao Oscar pelo filme “Ainda Estou Aqui“, utiliza a aridez e a luminosidade do sertão como elementos dramáticos fundamentais, criando uma estética visual que dialoga tanto com o cinema novo brasileiro quanto com o western contemporâneo.
As filmagens realizadas em Cabaceiras, na Paraíba – conhecida como “Roliúde Nordestina” –, enfrentaram desafios logísticos consideráveis devido às condições climáticas extremas e à distância dos grandes centros urbanos. No entanto, essas dificuldades resultaram em uma autenticidade visual rara, onde as paisagens naturais do sertão funcionam como personagens complementares à narrativa. A escolha por locações reais, em contraste com estúdios, demonstra o comprometimento da produção em oferecer uma experiência cinematográfica genuína e imersiva.

Qual o impacto da preparação de Isis Valverde para o papel?
A preparação de Isis Valverde para interpretar Maria Bonita envolveu um processo de imersão que vai muito além da tradicional decoração de texto. A atriz dedicou meses estudando documentos históricos, cartas da época e consultando historiadores especializados no período do cangaço. Este rigor na pesquisa histórica reflete uma nova geração de atores brasileiros que se aprofundam psicologicamente em seus personagens, elevando o nível das interpretações nacionais.
O diretor Sérgio Machado relata que no primeiro dia de filmagem, durante uma cena de parto intensa, pediu para Isis “se jogar no chão e comer terra”, teste que ela executou sem hesitação. Este episódio ilustra o nível de comprometimento físico e emocional exigido pelo papel, onde a atriz precisou abandonar qualquer vaidade ou conforto para construir uma personagem visceral e autêntica. A transformação física e psicológica da atriz demonstra como o streaming nacional está investindo em performances que competem internacionalmente em termos de qualidade interpretativa.
De que forma a série dialoga com as questões sociais contemporâneas?
“Maria e o Cangaço” transcende o entretenimento histórico ao abordar questões sociais que permanecem relevantes na sociedade brasileira atual. A série explora temas como violência de gênero, machismo estrutural e desigualdade social através da ótica do século XX, mas com ressonâncias claras nos debates contemporâneos sobre direitos femininos e empoderamento. A protagonista não é retratada como vítima das circunstâncias, mas como agente ativa de transformação social em seu contexto histórico.
A representação de Maria Bonita como mulher alfabetizada que escolheu voluntariamente integrar o cangaço desconstrói estereótipos sobre a passividade feminina no sertão nordestino. Esta caracterização dialoga diretamente com movimentos feministas atuais, oferecendo um modelo histórico de resistência e autodeterminação. A série demonstra como narrativas bem construídas podem funcionar simultaneamente como entretenimento e ferramenta educativa, promovendo reflexões sobre desigualdades que persistem na sociedade brasileira.
Como o projeto se posiciona no mercado internacional de streaming?
A entrada do Disney+ na produção de conteúdo nacional estratégico representa uma mudança significativa no panorama do streaming brasileiro. Ao investir em “Maria e o Cangaço“, a plataforma reconhece o potencial de narrativas autenticamente brasileiras para conquistar audiências globais, seguindo a tendência iniciada por sucessos como “Cidade Invisível” e “3%“. A série oferece ao público internacional uma perspectiva única sobre a história brasileira, diferenciando-se de produções estadunidenses ou europeias.
O projeto também representa uma aposta na qualidade técnica das produções nacionais, com padrões de fotografia, direção e pós-produção comparáveis aos melhores conteúdos internacionais. A participação de Adrian Teijido, profissional com reconhecimento internacional, garante que a série atenda aos critérios técnicos exigidos por audiências globais. Esta estratégia pode abrir precedentes para futuras coproduções entre plataformas internacionais e talentos brasileiros, fortalecendo a indústria audiovisual nacional.
Que legado a série pode deixar para futuras produções brasileiras?
“Maria e o Cangaço” estabelece novos parâmetros para a representação histórica no audiovisual brasileiro, demonstrando que é possível abordar temas nacionais com sofisticação técnica e sensibilidade social. A série prova que narrativas centradas em protagonistas femininas fortes podem conquistar audiências diversificadas, abrindo caminho para mais produções que explorem outras figuras femininas históricas brasileiras anteriormente marginalizadas.
O sucesso da produção pode influenciar futuras políticas de incentivo à produção audiovisual nacional, demonstrando a viabilidade comercial de investimentos em conteúdo original brasileiro de alta qualidade. A série também estabelece precedentes para parcerias entre plataformas internacionais e talentos nacionais, criando um modelo sustentável de desenvolvimento da indústria criativa brasileira. O projeto confirma que o Brasil possui competência técnica e criativa para produzir conteúdo que compete globalmente, desde que conte com investimento adequado e visão estratégica clara.










