Violência contra a mulher

No DF, três meninas estupradas interromperam a gravidez em 2020

Dados oficiais mostram que ao menos 10 meninas violentadas sexualmente este ano engravidaram no DF. Vítimas estão amparadas na lei para interromper gestação e o Hmib presta atendimento de referência na rede pública de saúde

Jaqueline Fonseca
postado em 18/08/2020 21:45 / atualizado em 19/08/2020 11:53
 (crédito: Marcelo Ferreira/CB/D.A Press)
(crédito: Marcelo Ferreira/CB/D.A Press)

Dez meninas violentadas sexualmente no Distrito Federal engravidaram e receberam acolhimento do Programa de Interrupção Gestacional Previsto em Lei (PIGL) em 2020. Três delas foram encaminhadas para o procedimento de retirada do feto e evitaram o avanço da gravidez precoce provocada pelo estupro. A maioria mora em regiões do DF marcadas pela vulnerabilidade social ou no Entorno.

Duas das adolescentes tinham menos de 14 anos, portanto, a violência configura estupro de vulnerável. Entre as outras sete vítimas, uma ainda está em fase de atendimento psicossocial para definir a melhor conduta; outra abortou espontaneamente e as demais não cumpriram os critérios legais de atendimento ou desistiram de interromper as gestações. Elas têm entre 12 e 17 anos. Uma foi estuprada pelo tio, outras duas por ‘amigos’, e as demais não identificaram os agressores. Riacho Fundo, Itapoã, São Sebastião, Taguatinga e Águas Lindas de Goiás são algumas das cidades em que moram.

Vitória Lobo, ex-coordenadora do Conselho Nacional de Direitos da Mulher, vê que as meninas mais carentes estão mais expostas às situações de violência. “Ela é mais vulnerável porque vive em condições de menor preparo. Mas não dá para dizer que só acontece com meninas de baixa renda. O que eu acho é que quem tem condições faz isso de outra forma. Não vai para o SUS (Sistema Único de Saúde).”

A professora da UnB Tânia Montoro, estudiosa de questões que envolvem violência de gênero, entende que a falta de uma estrutura econômica pode fomentar a submissão da vítima ao agressor. “As relações de opressão e dominação são sempre relações que incrementam a violência sexual. Às vezes, crianças vão morar na casa de tio, parentes ou outras pessoas porque a mãe não tem condições. E isso também conta muito.”

Foi o que aconteceu com uma vítima ouvida pelo Correio. Há trinta anos, ela foi estuprada pelo irmão da cunhada. À época, ele tinha sofrido um acidente que o deixou acamado. A cunhada pediu que a menina de 6 anos fosse viver com ela para ajudar e fazer companhia. Assim, constantemente ficava sozinha com o estuprador e era violentada sem entender exatamente o que estava acontecendo. Ela narra que ele a forçava a fazer coisas que a “deixavam com nojo”.

Só no ano passado ela conseguiu falar sobre o assunto. A coragem de contar o que houve veio quando o criminoso fez uma nova vítima: “Fui abrir a boca com 37 anos. No que dia que ela foi fazer a denúncia na delegacia eu decidi ir também. Contei o que tinha acontecido comigo. Eu tinha 6 pra 7 anos de idade. E eu só contei o que tava acontecendo pra afirmar que aconteceu com a minha sobrinha porque eu sabia que ele ia fazer mais vítimas”, disse a ex-moradora do DF que hoje, aos 38 anos, mudou de estado para se afastar do estuprador e da família.

Presidente da Comissão de Defesa dos Direitos da Criança, Adolescente e Juventude da OAB-DF, o advogado Charles Bicca informa que de 70% a 90% dos crimes de estupro de crianças são cometidos dentro de casa, e durante a pandemia a situação daquelas que vivem em lares violentos piorou. “Nós estamos vivendo o caos. A violência praticada dentro dos lares, praticada por pais, responsáveis ou ‘amigos’, virou um problema de saúde pública no Brasil. O lar está deixando de ser um local de conforto para ser um ambiente de violência", denuncia.

Em geral, os crimes são cometidos por pessoas que detém a confiança dos adultos da casa e que circulam e convivem dentro da lar das crianças violentadas. Vitória Lobo destaca, no entanto, que as crianças dão pistas sobre os abusos e precisam ser enxergadas com carinho. “A criança muda, não é uma coisa invisível.”

Apoio psicossocial é essencial

Moradora do Entorno do Distrito Federal e mãe de duas crianças, uma outra vítima ouvida pelo Correio narra a violência sofrida e o machismo que reforça estereótipos e silencia as vítimas. “Eu tinha uns 6 anos e era bem mirradinha. Ele veio pra cima querendo me estuprar e minha mãe entrou e me deu uma surra. Ela (mãe) me botou de joelho me fez pedir perdão dizendo que eu era p*, que eu estava induzindo o marido dela, que eu estava dando em cima do marido dela.”

Pais, avós ou responsáveis legais que não dão fé das reclamações ou denúncias de violência doméstica relatadas pelas crianças também podem ser penalizados nos termos no Código Penal, conforme explica Charles Bicca. O advogado também explica que a legislação é clara com relação à proteção da infância, mas falta bom senso e trabalho conjunto para que os direitos das crianças sejam plenamente garantidos. “As crianças são sujeitos de direito com proteção integral e prioridade absoluta nos termos da Constituição Federal. As crianças possuem mais direito que nós adultos. Mas isso precisa sair do papel e ir para as ruas, pois isso é um dever do Estado, da família e de todos nós”, resume.

Presidente da Frente Parlamentar de Promoção dos Direitos da Crianças e do Adolescente na Câmara Legislativa do Distrito Federal, o deputado Fábio Felix reforça ainda a importância do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). “O estatuto é muito objetivo na garantia prioritária e absoluta na garantia do atendimento à criança e ao adolescente.”

Anamaria Silva Neves, doutora em psicologia, destaca que o estupro, além de violar os direitos básicos da criança altera o desenvolvimento e a formação da personalidade. Por isso, a menina estuprada não pode ser obrigada a levar a gestação adiante uma vez que foi fruto de violência. “Quando uma criança engravida não lhe pode ser imputada a condição de herdar através da gravidez a obrigação de criar uma outra vida.”

Direitos assegurados pela Constituição

A exposição do caso da menina de 10 anos que passou por procedimento de interrupção de gravidez após ser vítima de estupro cometido por um familiar levantou o debate sobre o tema que, na verdade, já é previsto na legislação há anos. A criança recebeu atendimento médico no Centro Integrado de Saúde Amaury de Medeiros (Cisam), hospital escola da Universidade de Pernambuco (UPE) e agora será acompanhada por uma equipe de assistentes sociais e psicólogos. O tio, suspeito de cometer o crime, está preso.

No Distrito Federal, esse direito é garantido por meio de atendimento gratuito no Sistema Único de Saúde (SUS). O Programa de Interrupção Gestacional Previsto em Lei (PIGL) existe, na capital federal, desde 1996, e funciona em três salas de acolhimento no Hospital Materno Infantil de Brasília (Hmib). A Secretaria de Saúde ressalta que o PIGL é o único equipamento habilitado para realização do aborto previsto em lei no DF e Entorno. No caso de adolescentes até 14 anos o estupro é presumido, já que por lei são consideradas vulneráveis. Acima desta idade, a avaliação considera outros elementos. O acesso ao programa não demanda registro de ocorrência ou qualquer envolvimento com autoridade policial.

Responsável técnica de unidade de atendimento a situações de violência no Hmib, Vanessa Abritta explica que a vítima de estupro deve buscar atendimento médico o mais rápido possível. As mulheres fazem exames de sangue e recebem um kit com medicamentos para evitar gravidez e doenças sexualmente transmissíveis. "Depois, elas são encaminhadas para os atendimentos psicológicos e com assistente social, para fazer o acolhimento", detalha.

A psicóloga frisa que a saúde vem primeiro, mas reforça a relevância de denunciar os casos à polícia. “Importante procurar o sistema de saúde para fazer o atendimento tanto da profilaxia quanto psicológico, para ajudar na superação, e depois ir até a polícia, porque a denúncia é importante para evitar que o crime aconteça de novo”, afirma.

Vitória Lobo, ex-coordenadora do Conselho Nacional de Direitos da Mulher e estudiosa das questões de gênero, destaca que o atendimento psicossocial é fundamental para ajudar a vítima a se recuperar do trauma. “A violência gera impactos cívicos, cognitivos, psicológicos e fisiológicos também. Em um adulto isso já cria muito problema, imagine em uma criança.”

 

 

 

Gravidez fruto de violência sexual pode ser interrompida

Toda mulher vítima de violência sexual que queira interromper a gravidez fruto de estupro tem respaldo legal. Helena Paro, médica, ginecologista e obstetra, coordenadora do Núcleo de Atenção Integral a Vítimas de Agressão Sexual da Universidade Federal de Uberlândia, explica que, no caso de crianças e adolescentes, manter a gestação precoce pode gerar graves riscos ao feto e à menina, inclusive levando à morte. “É um absurdo quando a gente pensa em preservar uma vida de um feto, se a gente pensa que está colocando em risco a vida dessa criança e a vida de uma possível criança que viesse a nascer ”, observa.

Paro explica que, mesmo nos casos em que a gravidez é levada adiante, há um risco enorme para o bebê nos dois primeiros anos de vida. Segundo ela, a taxa de mortalidade infantil entre essas crianças pode ser cinco vezes maior que em outros casos. A profissional da saúde explica também que não há delimitação de idade para a mulher realizar o procedimento. “Nos últimos cinco anos, mais de 112 mil entre meninas entre 10 e 14 anos foram submetidas a parto. Isso é um indicativo de que ou os profissionais de saúde desconhecem a lei ou os profissionais de saúde continuam se omitindo ao aborto previsto em lei”, ressalta.

A advogada Priscilla Chater faz duras críticas a essa omissão. Para ela, todo o arcabouço governamental deveria participar do atendimento mais ativamente, bem como acolher melhor as vítimas. “A hipocrisia, a cegueira e a negligência do Estado têm levado as mulheres a buscar meios bárbaros de interromper a gravidez. E a negligência acaba gerando o mesmo efeito do aborto, que é a morte. Procriar e maternar talvez seja a liberdade mais visceral das mulheres e por isso absolutamente nada e nem ninguém poderia impedi-la de exercer isso.”

Essa matéria foi atualizada às 9h10, pois informava que não há limite de tamanho do feto para interrupção da gravidez. No entanto, Instrução Normativa do Ministério da Saúde prevê limite de 22 semanas para o abortamento, exceto em casos de risco de morte materna, quando outros critérios devem ser considerados.

 

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