Crônica da Cidade

Alexandre de Paula
postado em 23/08/2020 23:42 / atualizado em 23/08/2020 23:42

Blackbird no meu quarto

Acordei com um passarinho no meu quarto. Ele não cantava. Gemia. Nico, meu gato, o arrastou, de um modo improvável, por entre as pequenas frestas de rede de proteção da janela. Penso que queria brincar, mas acabou machucando o bichinho. Eram seis e pouco da manhã de um sábado. O sol recém-nascido contornava os prédios e eu, envolto em cobertores, não tinha qualquer intenção de sair da cama antes das 8h.
Pensei que pudesse ser sonho e tentei ignorar aquele gorjeio insistente e agudo demais. Não era. A ave estava lá. Quando me levantei, Nico a fitava em posição de ataque. Quando ele chegava perto, o bicho ensaiava pequenos voos e se acomodava num outro canto da casa, como se pudesse se esconder nas beiradas do cômodo. Não podia e o gato o seguia atento.
Era um pássaro negro. Todo escuro até o bico, se não me engano. Os especialistas em aves me perdoem, mas, apesar de ter crescido no interior de Minas Gerais entre sabiás, pardais e quero-queros, não sei nada sobre o assunto. Naquela hora, minha mente musical sempre tão nacionalista me traiu e eu pensei em Blackbird antes de Assum preto. “Blackbird singing in the birth of morning”, improvisei, sem conseguir encaixar bem o ritmo.
Tive um pouco de medo, confesso. E me aproximei para ver se ele reagia. Estava pronto para pegá-lo e usava sacolas nas mãos como luvas. Antes, abri bem as cortinas e a janela e tentei conduzi-lo. Vendo a luz, o assum preto cantou de dor (ou de esperança?). Num voo que espero não ter sido o último, o pequeno animal escapou. Nico, também preto, tentou agarrá-lo antes que cruzasse as grades de náilon que o separavam da liberdade. Foi inútil.
Nico me olhou esquisito. Era a mesma cara de quando estamos brincando de caça e ele persegue minha mão escondida por baixo da coberta e eu me canso. Havia um rastro de decepção pelo fim da travessura e outro tanto de raiva. Tenho também uma gata, a Nina. Ela só olhava de longe o espetáculo, como se tudo fosse muito fútil para merecer a participação dela. Às vezes, soltava uns bocejos de tédio. Eu, de sono.
Nico não é um assassino, concluí. Ele teve o pássaro ao seu dispôr para execução por vários momentos e preferiu não fazê-lo, ainda bem. Deve pensar que o bicho é — como os brinquedos de plástico que compro ou como a minha mão — imortal, por enquanto. O instinto não é tudo, também penso, ou a pequena ave teria virado alimento. Olhei pela janela, recomposto. Não vi o animal mais. Deve ter buscado amparo longe dos nossos olhos.
Nico agora está dormindo. Talvez sonhe com um mundo em que brinca com aves de verdade todos os dias, talvez, como o pássaro, sonhe com liberdade (o que me deixa um pouco triste e faz com que eu me sinta culpado, apesar de tê-lo adotado). Faço carinho. Dá para ouvir o ronronar. Tenho inveja dele que não sabe o que nós, humanos, temos aprontado por aqui.

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