Crônica da Cidade

Pacto de solidariedade

Severino Francisco
postado em 01/09/2020 22:38

Observei que, desde pequena, a minha neta Aurora caminhava com muita graça natural, parecia mover-se com passos de bailarina. A minha filha a colocou em uma escolinha de ginástica rítmica, comandada pela professora Bruna. Aurora começou enfrentando dificuldades.

Mas, graças à tenacidade, ao rigor e à dedicação da professora, ela conquistou disciplina, concentração e domínio do corpo. Participou de diversas apresentações públicas, com segurança e desenvoltura.

Durante a pandemia, fomos brindados com vários espetáculos, nos quais a Aurora foi, a um só tempo, a diretora, a atriz, a dançarina, a cantora, a figurinista e a bilheteira. Ela comandou tudo com o perfeccionismo, a obsessão, o despotismo, a megalomania e os caprichos dos grandes diretores.

Aurora exigiu que se mudasse toda a configuração dos móveis da sala, determinou o lugar em que deviam sentar os espectadores ou o figurino que precisariam trajar. Na falta de alguém mais qualificado, vesti um terno preto para participar, na condição de, digamos assim, bailarino convidado, de uma montagem de trecho do balé O lago do cisne, de Tchaicóvski.

A produção foi complicada, a diretora fez milhares de exigências aparentemente absurdas. Mas, depois, reconhecemos que eram em benefício da qualidade do espetáculo. Aurora estava linda, diáfana e alada, envolvida em um vestido branco e adornada por outros atavios. Ao som de Tchaicóvski, deslizou pela escada da sala, com a leveza de uma sílfide, caiu dançando e tomou pela mão o desastrado parceiro de palco.

Tudo foi perfeito, exceto pela circunstância de que eu estava com dores na coluna e não consegui suspendê-la no ar, de braços e pernas abertas em voo, ápice do espetáculo: “Faltou o grand jeté”, explicou, tecnicamente, Aurora.

Embora o balé seja outro departamento, assimilado pela Aurora por conta própria, em cada detalhe do espetáculo, sentimos a influência indireta inspiradora da mestra. Evidentemente, o primeiro objetivo do curso comandado pela professora Bruna é educacional.

De um pequeno talento é possível extrair aprendizagem, concentração, disciplina, persistência e prazer do movimento harmonioso. Forma-se um ser humano mais completo. Se daí sair uma dançarina profissional ou uma atleta para competir nas Olimpíadas, maravilha.

Todavia, de repente, irrompeu a pandemia e nos empurrou para o isolamento social. Com a memória viva da dedicação da professora Bruna, estabelecemos como ponto de honra continuar pagando as mensalidades, mesmo sem aula presencial. Ela concedeu desconto e deu aulas virtuais.

Parece que os outros pais tiveram a mesma percepção e firmaram um pacto de solidariedade. A professora ficou tão sensibilizada que resolveu brindar aos pais e aos alunos com um presente simbólico do cuidado com o outro: hortaliças orgânicas que planta na chácara onde mora, acompanhadas de um bilhete de gratidão. Foi um gesto elegante, gesto de bailarina.

Nós é que temos de agradecer à senhora, professora Bruna, pelos muitos momentos de alegria que nos proporcionou com sua ação educadora. Em meio à pandemia e ao pandemônio (provocado pelos governantes), ocorreram, também, nesses tempos, pequenas coisas bonitas, laços de confiança fortalecidos, pactos de solidariedade, gestos elegantes. E que vão ficar.

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