A vida do lado de dentro
Camus afirma, no livro A peste, que a epidemia mortal de Yersinia pestis possibilitou que os habitantes de Orã, na Argélia, fossem eles mesmos por um período. Ao menos enquanto a cidade estava sitiada e os moradores, incertos do amanhã, morriam às centenas por dia. Depois que o martírio passou, esqueceram-se de quem eram. Sob o signo da peste de nossos tempos, compartimos com as personagens o singular privilégio de nos nutrir do brilho que a morte provoca, enquanto a humanidade se dilui e o que parecia sólido ebule. Neste cenário, as fraquezas ganham traços mais fortes do que as certezas, aturdindo as crenças que nos servem de máscara. É possível enxergar com maior clareza o elo mais fraco da corrente de si e da sociedade quando a morte nos bate à porta.
Por esse ângulo, talvez, não pareça assim tão glamouroso se deixar sentir. Mas é apenas porque nos identificamos mais com as máscaras frágeis das certezas do que com nossas feridas e sonhos. Viver é reconhecer-se. Expor o sensível. Quando a vida se aproxima do fim, ela se dobra sobre si própria e se extingue como um ponto que desaparece. Pontos, na matemática, não possuem volume ou raio. São adimensionais. Tal qual a grandeza de nossa vida ante a infinitude da história, da evolução, das metamorfoses do planeta e do universo.
É nesse cenário de profunda insignificância e de falta de sentido e de respostas, que a vida se consome e trêmula como a chama de uma vela fraca ao vento, que o homem pode, num fôlego só, impotente de agarrar o mundo que escapa como areia entre os dedos, sentir o sabor único de tudo o que viveu em um lance de língua, como uma epifania diante de um quadro, música, ou após o término de um bom livro.
Existem, então, dois caminhos. O imaginativo, em que, a vida, de fato, se esvai, deixando para trás a fumaça da saudade. E só podemos imaginar o que se passou na mente daquele que deixou de existir, e dizemos que deve ter sentido isso, se lembrado daquilo; e o dedutivo, em que, por um golpe de sorte, sobrevivemos e temos a tola percepção de que o ponto adimensional voltou a se expandir. Sentimos a sensação de renascer e, ao menos por um tempo, toda a nossa percepção da vida se transforma sob novas perspectivas, como os habitantes de Orã. É a partir dele que deduzimos, sem nenhuma capacidade de prova, que os que não sobreviveram sentiram o mesmo que sentimos.
Mas não é necessário sofrer um acidente de carro, passar por uma doença terrível ou por uma experiência violenta para encarar a experiência. É possível vivê-la por completo enquanto se cozinha, lava a louça, ao escrever ou ler um livro, ao acordar de manhã, ao deitar na cama à noite, ao tomar um banho esperando ou não por isso. Mas, claro, a proximidade da morte provoca com mais facilidade a percepção sensível da relativização da vida, da existência e do nosso tamanho no universo, e o consequente contato com o mais profundo em nós.
Esse é o pulo do gato. O ponto sem dimensões pode nunca se expandir, mas a luz do espírito que emana do pequeno furo ou relevo, da coisa matemática em si, impossível de ser desenhada sem demarcar um espaço que não seja o da bitola do grafite, é forte o suficiente para iluminar todo o universo ao redor e, até, um pouco além, para que a claridade chegue a quem amamos.
A todo o momento, podemos morrer. Sitiados em nossas casas, cidades e países, no planeta. Enfim, temos a oportunidade de sentir que a morte vive em nossas casas, andando onde não estamos, comendo quando não a vemos, bebendo em nossos copos, nos observando enquanto dormimos, como uma inquilina indesejável, mas impossível de se livrar. É importante, pois é o que dá a melhor dimensão da vida. A morte espreita e dá luz e significado ao mesmo tempo que banaliza e dissolve na perspectiva. Sair de casa em meio à pandemia é fechar os olhos, banalizar-se, negar o sentido e a sensibilidade, descartar nossa segunda chance. A morte, enfim, é boa conselheira. Você escuta?
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