Crônica da Cidade

Língua kariri

Severino Francisco
postado em 14/09/2020 22:15


Vejam só como, quando querem, os deuses jogam seus dados. Ricky Seabra, irmão de Philippe Seabra (da Plebe Rude), nasceu em Washington, nos EUA. Cresceu em Brasília, morou em Washington, Nova York e Amsterdã. É professor de inglês, designer e performer.

Formou-se em Comunicação Visual pela Parsons School of Design e tem mestrado em pesquisa em design pela Design Academy Eindhoven na Holanda. O destino o empurrou para a cidade do Crato, no sertão do Ceará, onde morou de 2012 a 2017. Lá, teve a atenção despertada para elaborar um dicionário da língua kariri.

Na volta ao Brasil em 2004, participou de um festival de teatro do Sesc, com Andrea Jabor e Dirk Verstockt. A última cidade era Crato. No aeroporto do Recife para o Crato, havia 10 filas de índios. Nunca tinha participado de um festival com a presença de indígenas. Ele gostou muito da cidade, resolveu documentar o casario no estilo arte decô e voltou várias vezes.

Quando a situação de financiamento de projetos no Rio ficou difícil em razão dos investimentos maciços nas Olimpíadas de 2016, Ricky ligou para a secretaria de Cultura e perguntou se havia alguma coisa para fazer lá: “Venha!”, a resposta chegou em forma de ultimato. Ricky foi designado diretor do Museu do Crato.

Em 2014, Seabra encontrou na Biblioteca Pública de Nova York um exemplar raro de um catecismo escrito pelo padre jesuíta Luis Mamiani, em português e kariri. Foi o ponto de partida para elaborar o dicionário. A partir daí, incorporou as pesquisas do professor da UnB, Aryon Dall’Igna Rodrigues, decodificou e acrescentou novas palavras.

Descobriu que a gramática Kariri é uma das mais documentadas nas línguas ameríndias. O dicionário que Ricky construiu tem 1.500 palavras. Para reavivar, efetivamente, a língua, será preciso criar mais palavras. Mas já é possível praticar os fundamentos. Ele continua o trabalho.

A maioria das pessoas do Cariri cearense ostenta traços de origem indígena e confessa ter uma bisavó ou tataravó índia “pega no laço”. Seria melhor que os 26 municípios da região adotassem uma cartilha, as crianças aprendessem as declinações, contassem até 10 e entoassem cânticos kariris e a Ave Maria, argumenta Ricky. Daria mais dignidade à ascendência indígena. É melhor que dizer que a bisavó foi “pega no laço”.

Para Ricky, uma das joias do idioma Kariri é a palavra “use” (se pronuncia “usa”), que significa felicidade, mas também saber. Talvez indique que para ser feliz é preciso ser sábio. Seabra teve uma grande alegria ao fazer pesquisas na internet. Descobriu que os índios Kariri-xocós de Alagoas ensinam a língua primitiva às crianças.

Depois do contato, Ricky teve a esperança de que a língua Kariri saia do estado de dicionário e se torne um idioma vivo novamente. O sonho passou a ser sonhado junto. Vamos ver se os deuses continuam a jogar os seus dados.

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