Ameaças, perseguições e violência física. Pelo menos três mulheres viveram esse cenário de terror nesta semana no Distrito Federal. Além de Shirley Rúbia Gertrudes, 39 anos, que morreu assassinada a facadas na frente da filha, durante uma consulta, outros dois casos de tentativa de feminicídio aterrorizaram moradoras da capital. Em Planaltina, uma professora, 31, foi esfaqueada por um homem que a seguia desde junho. Um dos golpes do ataque passou a menos de 1 centímetro do coração. Na Estrutural, uma jovem de 19 anos foi vítima de um crime semelhante, quando estava dentro de casa e acabou atacada pelo próprio namorado, com uma faca. Ela foi atingida na cabeça e no peito. Essas histórias que se repetem têm as mulheres como vítimas e ligam alertas para as autoridades.
“O Estado pode reduzir esses casos, primeiro, monitorando. Ou seja, identificando a causa da violência contra a mulher. O machismo, a construção histórica e social, e a condição socioeconômica. Todos esses são fatores que estão ligados a maior parte dos casos”, explica Neusa Maria Batista, psicóloga especialista em saúde mental e fundadora do projeto Renascer, para mulheres em vulnerabilidade. “Saber qual a causa, o efeito e o resultado dessa violência é essencial. Mas precisamos de uma rede de apoio integrada para elas. Uma vítima que presta queixa na delegacia não pode voltar para casa se o marido é autor do crime. Então, devemos pensar para onde ela pode ir e quais cursos de formação ela pode ter acesso para independência financeira”, exemplifica a especialista.
A brutalidade dos casos choca. Shirley Rúbia, segurança e moradora de Taguatinga, deixou dois filhos. Um adolescente, 17, e uma criança de 4 anos, que viu a mãe ser morta enquanto passava por uma consulta com o pediatra. A garota não compreende o que aconteceu. “Ela acha que a mãe está no hospital, fazendo cirurgia, mas vai voltar”, conta Robson Eurípides, 52, tio da menina. A garota recebeu um atendimento do Departamento de Psicologia do hospital onde ocorreu o crime, em Ceilândia. “Não sei o que vamos falar para ela daqui para frente. Não sei como contar que a mãe faleceu. Ainda não conseguimos nem pensar nisso”, diz Robson. A família agora se prepara para a despedida de uma mulher que deixa como marcas o amor pela família, a dedicação ao trabalho e a empatia com todos que ela podia ajudar de alguma forma. O autor do crime tirou a própria vida na casa dos pais.
Outro caso de violência que teve uma moradora do DF como vítima veio à tona nos últimos dias. No domingo, uma professora foi esfaqueada pelo ex-namorado no Vale do Amanhecer. O relacionamento dos dois havia terminado há 12 anos, mas ele passou a perseguir a pedagoga quando ela se mudou temporariamente para a casa da família, em Planaltina. “Nós tivemos algo simples e passageiro. Em junho, quando eu voltei, ele veio atrás e eu disse que queria ele longe, que não queria nem a amizade dele”, explica. A professora conta que, após isso, o ex começou a mandar mensagens ameaçadoras. A violência psicológica se tornou física enquanto ela fazia as unhas. A professora foi surpreendida com a chegada do ex-namorado, já com a faca nas mãos.
“Quando eu o vi com a faca, fui para cima, tentar segurá-lo. Quando consegui um espaço, sai correndo. Foi nesse momento que ele me atingiu. Uma das facadas, nas costas, perfurou o pulmão esquerdo. Então eu saí, desesperada. Eu corri sangrando por 500 metros, pedindo ajuda para os vizinhos”, contou. A vítima está internada em um hospital público do DF e não corre risco de morte. O homem foi preso em flagrante, horas após o crime, por policiais da 16ª Delegacia de Planaltina, próximo a uma cachoeira da região. Segundo a Polícia Civil, ele ainda estava com a faca usada na tentativa de feminicídio. O caso foi enquadrado na Lei Maria da Penha.
Agressor em casa
Também foi em uma região afastada do centro de Brasília que mais uma mulher acabou sendo vítima de violência. A jovem de 19 anos estava dentro de casa no último domingo, na Estrutural, quando o namorado chegou e iniciou uma discussão. A mãe da vítima, uma mulher de 42 anos que não quis se identificar, contou ao Correio que o rapaz de 25 anos estava embriagado. “Ela me contou que o namorado chegou por volta das 20h30. Eles começaram a brigar e ele deu empurrões. Logo depois, o garoto pegou uma faca e a golpeou na cabeça e nas costas”, detalha. A jovem conseguiu ir até o posto policial que fica na Vila Olímpica, onde os policiais chamaram o socorro.
Ela foi levada a um hospital público e estava consciente pela manhã de segunda-feira, mas precisou ser intubada na tarde do mesmo dia. Segundo relato da mãe da vítima, o agressor foi ao hospital com um ferimento na mão e acabou sendo abordado pela Polícia Militar no local. Os dois namoravam havia dois meses e moravam juntos. Segundo o último levantamento da Secretaria de Segurança Pública (SSP), o DF computou 25 tentativas de feminicídio até julho de 2020. Em 72% destes casos, as mulheres foram vítimas das agressões na própria residência, sendo que 22 autores, destes 25 crimes, tinham ou já tiveram um relacionamento conjugal com as vítimas.
Para o secretário de Segurança Pública, delegado Anderson Torres, esse tipo de violência tem difícil prevenção, mas a pasta vem trabalhado para incentivar denúncias e fornecer apoio às vítimas. “A Polícia Civil ampliou o atendimento da Delegacia Eletrônica para o registro de casos de violência doméstica. As visitas do programa de Prevenção Orientado à Violência Doméstica e Familiar (Provid), da Polícia Militar, também foram adaptadas. Para se ter uma ideia, o Provid já realizou mais de 4 mil visitas a vítimas este ano”, destaca o secretário. Torres também classifica o enfrentamento ao feminicídio como prioridade. “Por acontecer, em sua maioria, no ambiente familiar, o feminicídio é um crime de difícil prevenção e de fácil elucidação. Neste ano, cerca de 70% dos casos ocorreram dentro de residências, o que torna difícil o trabalho da polícia. Temos nos mobilizado para garantir uma resposta rápida aos casos de violência doméstica para que não se torne feminicídio”, explica.
*Estagiário sob a supervisão de Adson Boaventura
De janeiro a agosto de 2020
12
registros tipificados como feminicídio (foram 21 no mesmo período de 2019)
32
tentativas de feminicídio (foram 63 no mesmo período de 2019)
364
crimes de estupro (foram 457 no mesmo período de 2019)
10.396
ocorrências de violência contra a mulher, com base na Lei Maria da Penha (foram 10.825 no mesmo período de 2019)
Onde procurar ajuda
» Delegacia Especial de Atendimento à Mulher (Deam)
Entrequadra 204/205 Sul — Asa Sul
» Delegacia Especial de Atendimento à Mulher (Deam II)
QNM 02, AE, Conjunto G/H — Ceilândia Centro
» Central de Atendimento à Mulher em Situação de Violência;
Secretaria de Políticas para as Mulheres da Presidência da República
Telefone: 180 (disque-denúncia)
» Centro de Atendimento à Mulher (Ceam)
De segunda a sexta-feira, das 8h às 18h
Locais: 102 Sul (Estação do Metrô), Ceilândia e Planaltina
» Disque 100
Ministério dos Direitos Humanos
» Programa de Prevenção
à Violência Doméstica (Provid) da Polícia Militar
Telefones: (61) 3910-1349 / (61) 3910-1350
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Palavra do especialista
Desafios das vítimas
As políticas públicas são parte da solução. A violência contra a mulher tem outros componentes que não podem ser controlados apenas por normas legais ou fiscalização governamental. As vítimas têm desafios que vão da dependência econômica de quem as vitimizam, ao medo de denunciar por não haver garantias de que não sofrerão novas agressões. As políticas públicas devem ampliar o acolhimento que hoje é dado às mulheres agredidas, sensibilizando cada cidadão quanto a sua parcela de responsabilidade quando se deparam com esses crimes, reforçando e premiando ações que permitam que mulheres tenham independência econômica que as liberte de ambientes em que sofram agressões. Além disso, já é viável agregar em escala significativa tecnologias — como botões de emergência e tornozeleiras eletrônicas — ao processo de proteção de quem precisa estar a uma distância realmente segura do agressor.
Leonardo Sant’Anna, especialista em segurança