Crônica da Cidade

Correio Braziliense
postado em 18/09/2020 22:20 / atualizado em 18/09/2020 22:20

A moça da faxina

A moça que faz faxina saiu para jogar o lixo na lixeira compartilhada do andar, e demorou a voltar. Achei, por um momento, que ela tivesse ido embora sem receber o pagamento.
Passados cinco minutos, ela retornou com uma sacola. Enquanto a abria, falava sem embaraço, mas esperando minha aprovação, que alguém havia dispensado algum item de valor — um par de sapatênis. “Veja, ainda dá pra usar. Parecem novos.”
Inicialmente, eu não soube como reagir. Foi uma cena inesperada. Alguém, que acabara de limpar minha casa e levar para fora o lixo, achou algo de valor na lixeira. Tentava organizar minhas ideias. Refleti, rapidamente, sobre pagar alguém para limpar meus cômodos, sobre a vida daquela senhora...
Ela ainda parecia querer minha aprovação para levar o sapatênis rejeitado por algum vizinho. Concordei que ele estava em bom estado, que poderia ser utilizado depois de limpo. Perguntei-me se não havia nada em minhas coisas que eu pudesse doar. Enquanto isso, ela me mostrava detalhadamente o calçado.
Essa senhora fazia faxina para meus pais desde minha adolescência. Também era zeladora do prédio onde morávamos. Meus velhos se mudaram para o interior, e eu morei provisoriamente em outros lugares, para finalmente me estabelecer em um apartamento mais novo, com algum conforto. Durante todo esse tempo, ela continuou como faxineira em nosso antigo endereço e, ocasionalmente, em meus lares.
Um filme se passou em minha cabeça. Minha juventude com meus pais, aquela moça a limpar o nosso apartamento. Sempre após a faxina, minha mãe doava algumas coisas para ela, de alimentos a itens domésticos.
Além do trabalho regular, ela continuava a faxinar e a depender de doações. Pouca coisa havia mudado. Ela deixara de contar com a ajuda de minha mãe e de outros idosos, do antigo condomínio, que acabaram morrendo. Eu não havia doado nada desde que ela passara a limpar meu apartamento, apenas a remunerava pelo serviço prestado.
Na tentativa de me redimir, procurei algo na geladeira. Não havia nada de valor para ela e família (raramente cozinho). Desci e comprei duas marmitas para nosso almoço. Insisti que ela comesse comigo à mesa, mas ela preferiu ficar na cozinha. Meus pais faziam o mesmo convite, e ele sempre era negado. Ela não comeu tudo, disse que era muita comida e que levaria para casa.
Entrei em uma discussão comigo mesmo, que não me fez muito bem naquele momento, mas foi um tapa na cara. Como fazer diferente, ir além da terceirização da faxina? “Dou uma oportunidade a alguém...” — que bacana, heim, Adson?
Após o almoço, enquanto a senhora retornava ao trabalho, comentou que sua filha prestaria vestibular. Queira Deus que ela tenha uma vida melhor.

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