Crônica da Cidade

Flashes

Alexandre de Paula
postado em 25/09/2020 21:36


Em algumas fotografias de criança, sou feliz. É uma infância da qual não me lembro. Os sorrisos lançados às lentes e o flash arrebentando as áreas claras da imagem são um recorte, mas nunca o todo. Meus olhos difusos. Meus sonhos inóspitos. Eu não sabia que precisava usar óculos e tinha delírios de cientista no quintal de casa.

A cabeça imensa. O corpo nem sempre imenso, mas quase sempre grande demais. Um computador na fuça. As bochechas apertadas como brinquedos, divertidos objetos de decoração à disposição de adultos bufões e irritantes. Uma canção triste irrompe depois das guitarras agressivas. Já nem sou mais criança e os poemas de Álvaro de Campos viram bíblia, palavras gravadas na pedra, certezas.

Tudo aqui é efêmero. 18 anos. Nas quadras 400, pergunto como chegar à universidade. Um casal de idosos faz caminhada de moletom. Respondem educadamente ao rapaz careca como chegar lá. Vou com pressa. E erro. Meu estômago dói. Estou com mãos frias. Um outro rapaz careca diz oi. Ninguém sabe, naquele ponto, que seremos amigos. Ninguém sabe, naquele ponto, que estaríamos onde estamos, discutindo, no fundo, os mesmos vãos.

A escada. O sofá. A porta da redação. Uma breve conversa. Eu digo “é claro” e semanas depois estou ali sentado entre aquelas mil pessoas com caras sérias e vozes seguras. Há um perfume. Até hoje não sei descrevê-lo precisamente, mas sinto meu corpo suar e meus olhos fritarem quando o sinto. Se pudesse, sairia correndo naquele tempo. Não saí. Nem vou. Casa é onde a gente consegue chorar sem medo e sorrir também. Sigo aqui.

Uma cerveja atrás da outra. 20 e poucos anos. Jovem demais para as embarcações; velho demais para os voos. Literatura, poesia, livros, amores. Tudo é etéreo e vago. Os discos que ouço pela milésima vez me ensinam como caminhar. Os livros gigantes me apontam os caminhos de fuga. Os livros em branco me iluminam os dias. O mundo continua misterioso e um dia talvez eu entenda que às vezes é mais importante amar a trama do que o desenlace, como ouço Jorge Drexler cantar agora.

Depois da cerveja, o vinho. É cedo para os destilados. O mundo é de vidro. E eu, desastrado. 28 anos. Tarde para morrer. Cedo para amar a vida e seus subterfúgios sem limites. O amor existe e infelizmente é uma lembrança futura e rara e está sempre alguns passos adiantado (e talvez esta frase seja uma concessão de estilo e o amor exista sem que seja necessário colar a ele quaisquer impropérios, por que não escrever só: “o amor”?).

Um corte. Este quarto. Este teclado. Este texto. Este agora, profundo e vasto, como um presságio de um futuro que não foi desenhado.

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