Crônica da Cidade

Drummond e Machado

Severino Francisco
postado em 01/10/2020 20:43

No poema A um bruxo, com amor, Carlos Drummond de Andrade faz uma homenagem pungente a Machado de Assis: “Outros da vida leram um capítulo, tu leste o livro inteiro”. A poesia de Drummond começou construída em linguagem coloquial e terminou em tom classicizante. Drummond parecia um Machado mais poroso, mais compassivo e mais humano.

Mas nem sempre houve sintonia entre os dois bruxos, o mineiro de Itabira e o carioca do Cosme Velho. A relação entre Drummond e Machado foi tensa, contraditória, crítica e rica em matizes. No ápice do modernismo, Drummond desancou o escritor carioca como um entrave à renovação das letras nacionais.

Em 1925, quando tinha 22 anos, o poeta mineiro escreveu no artigo intitulado Sobre a tradição em literatura: “Uma lamentável confusão faz com que julguemos toda novidade malsã, e toda velharia saudável. Este conceito equipara as obras literárias aos xaropes e outros produtos farmacêuticos: quanto mais tempo de uso, mais recomendáveis...”

A relação complexa entre os dois grandes escritores é reconstituída no livro Escritos de Carlos Drummond de Andrade sobre Machado de Assis, organizado pelo professor Hélio de Seixas Guimarães. O poeta de Itabira argumenta que o combate ao passado é condição essencial para a inovação: “Temos, pois, mais que o direito de desrespeitar essa falsa tradição: temos o imperioso dever”, sustenta o poeta.

Não para aí: “E só assim faremos dessa matéria morta e pegajosa dos séculos uma argila dúctil que sirva às nossas criações. Será mantendo essa independência espiritual, talvez ingenuamente feroz, mas francamente construtiva, que reataremos o fio tantas vezes perdido do classicismo. Os nossos avós inteligentes não desejariam de nós outra coisa. Copiá-los é o mesmo que injuriá-los”.

Drummond admite a admiração pelo autor de Memórias póstumas de Braz Cubas. No entanto, pondera que esse apreço deve ser sacrificado em benefício da revitalização da cultura: “Amo tal escritor patrício do século 19, pela magia irreprimível de seu estilo e pela genuína aristocracia de seu pensamento. Mas se considerar que este escritor é um desvio na orientação que deve seguir a mentalidade de meu país, para a qual um bom estilo é o mais vicioso dos dons, e a aristocracia um refinamento ainda impossível e indesejável, o que fazer? A resposta é clara e reta: repudiá-lo. Chamemos este escritor pelo nome: é Machado de Assis”.

A leitura de artigos, crônicas e enquetes, em ordem cronológica, revela uma mudança de perspectiva radical, que atinge o ápice três décadas depois com o poema A um bruxo com amor, em que Drummond reverencia Machado, com todas as letras. Inclusive com a colagem de textos machadianos.

O poeta itabirano havia lançado o desafio a Machado, se ele resistiria ao tempo e se consolidaria efetivamente na condição de clássico. E o próprio Drummond parece responder ao repto em crônica sobre uma exposição comemorativa a Machado de Assis: “Ali está um mundo de criação silenciosa, um exemplo severo e singelo de dissolução da pequenez humana na grandeza intemporal da obra literária. O velhinho gago e burocrata é hoje um universo de símbolos, palavras e achados artísticos, que poder nenhum saberia cassar. Nosso país ficou mais opulento, à custa desse funcionário pobre”.

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