Crônica da Cidade

por Humberto Rezende humbertorezende.df@dabr.com.br (cartas: SIG, Quadra 2, Lote 340 / CEP 70.610-901)

Correio Braziliense
postado em 02/10/2020 22:07


 

Kyara em Elysium

Elysium é uma estação orbital para onde os verdadeiramente ricos se mudaram no segundo século deste milênio. Na Terra, ficaram os que não têm dinheiro suficiente para viver lá, com conforto, ar limpo e tratamentos de saúde de última geração. Frey é uma enfermeira que embarca em uma nave pirata na esperança de entrar em Elysium, invadir uma das mansões e colocar a filha em uma máquina capaz de curar a leucemia que a ameaça.

Lançado em 2013 e estrelado por Matt Damon, Alice Braga e Wagner Moura, o filmeElysium, do diretor sul-africano Neill Blomkamp, faz o que as boas ficções científicas costumam fazem: imagina o futuro para nos ajudar a pensar o presente. É, em essência, uma alegoria das fronteiras traçadas pelo dinheiro e que nos dividem atualmente.

Nascido em uma família de classe média num país abundante de pobreza, por várias vezes me senti e me sinto morador de Elysium: quando chego à minha casa, em um bairro com baixos índices de violência; quando posso pagar por uma refeição gostosa; quando planejo uma viagem para a praia; quando ligo o ar-condicionado de meu carro em um dia insuportavelmente quente; quando sou atendido sem grande demora em um hospital particular.

E não estou enganado. Para tantos brasileiros, que não têm essa segurança, esse prazer, esse conforto, esse cuidado, sou habitante de uma longínqua e inalcançável estação, onde a vida é melhor e mais fácil. E por saber da sorte que tenho, não me incomoda o fato de não ter acesso a outros Elysiums que parecem luxuosos, agradabilíssimos, deliciosos, mas não são essenciais. São supérfluos.

A revolta surge quando percebo que as fronteiras negam o essencial para uma vida digna. Ou para a vida simplesmente. O personagem de Frey, interpretado por Alice Braga, provoca emoção e indignação porque existe uma máquina capaz de salvar sua filha. A máquina, porém, só pode ser usada por quem tem muito, muito, muito dinheiro. Mais uma vez, a máquina futurística, que na imaginação de Blomkamp existirá em 2154, é só uma alegoria do presente.

A filha de Frey, em 2020, pode ser chamada, por exemplo, de Kyara, uma pequena brasiliense de 1 ano e 5 meses diagnosticada com atrofia muscular espinhal, ou AME. A vida de Kyara pode ser muito menos difícil se, até os 2 anos, ela tomar um novo e avançadíssimo remédio. Para isso, basta que seus pais paguem pelo tratamento R$ 12 milhões. Essa cifra é a fronteira que separa a bebezinha do zolgensma, uma nova terapia capaz de corrigir falhas genéticas.

Que lógica perversa é essa que coloca as pessoas em uma situação como a que vivem Kyara e seus familiares? Como justificar que um novo e tão importante tratamento fique disponível apenas para quem tem condições de pagar R$ 12 milhões? Os pais da pequena brasiliense fazem o que podem. Brigam na Justiça para que o governo financie o tratamento, ao mesmo tempo em que tentam arrecadar o dinheiro por meio de uma campanha de doações. Embarcam, assim, em sua nave pirata na esperança de levar Kyara a Elysium. Torço para que consigam, mas desejo também para que tal absurdo não ocorra com mais ninguém.

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